BM escreve – Teatro Infantil: a primeira droga

Era uma tarde de domingo. Um céu límpido, um sol pra cada um. Um menino atravessa um pátio correndo, passa pelo gato laranja, em direção à porta. O moleque tem cinco anos e está apavorado. Quer sair daquele lugar o mais rápido possível. Um senhor de uns 60 anos, finalmente, impede o garoto. Os dois conversam por alguns minutos, na calçada em frente ao Teatro Campaneli, em Vitória, no Espírito Santo, esperando o espetáculo acabar. 

Essa é a história do dia em que me apaixonei pelo teatro.

Sempre gostei de circo. Mas também tinha medo de palhaço. Sempre gostei de andar de avião, mas morria de medo de altura. O medo, querendo ou não, é uma engenhoca cerebral que nos protege de muita coisa. Nos impede de viver, quando em grande quantidade, mas também nos permite apreciar certas situações por outros pontos de vista.

O Teatro Campaneli é uma das poucas casas de teatro na capital capixaba. O que é compreensível, porque Vitória é a prima caipira do sudeste. A gente tem dinheiro, temos paisagens lindas, temos praias (São Paulo, cidade, e BH choram de inveja), mas ainda falta aquele tchan cosmopolita das grandes metrópoles. Lá estava em cartaz, naquela tarde de domingo, a peça “Dormi… Sonhei… Mágico Virei”, cujo enredo é… o título. Um menino dorme, sonha, vira mágico e faz mágicas, acorda e volta a ser menino. E eu amava mágicas, desde bem pequeno. Então, bem… Minha família decidiu me levar pra assistir a peça.

Não guardo muitas lembranças daquele dia, até porque era muito pequeno, mas lembro de atravessar o pátio – uma espécie de foyer a céu aberto, já que o teatro era uma casa reformada para abrigar o auditório – e entrar naquela caixa escura, com aquele cheiro de fumaça, aqueles fios no teto ligando os refletores. Aquela sensação de estar entrando em um novo mundo a cada degrau cruzado.

Não me senti confortável, e saí correndo.

Mas, no final da peça, o diretor do teatro, que também era o personagem principal, me convidou para conhecer os bastidores. Eu, relutante, aceitei. Era um espaço pequeno, no entanto, pra mim, era imenso. Passei pelo camarim, imaginando a quantidade de transformações que aqueles espelhos já presenciaram; as coxias, que já assistiram tantos atores lidando com borboletas no estômago; e as luzes.

Ah, as luzes… 

Um poder absurdo de mostrar o que se quer mostrar e esconder o que se quer esconder com a simples virada de um interruptor. A sensação de saber que uma plateia inteira está te vendo, mas você não vê o rosto de uma pessoa sequer.

E ali, meu peito deu um nó. “I thought, hey, what a way to spend a day.”

E ali, também, descobri que o teatro ia começar um curso para crianças. E eu, prontamente, decidi me matricular. O que eu não sabia, é que lá, na verdade, seria ensinado teatro musical.

Fiquei cinco anos naquele curso. Era um dos poucos meninos, então sempre pegava os bons papéis. E aquele espelho assistiu eu me transformar em muitas outras pessoas. Aquelas coxias me acompanharam em tantas borboletas no estômago. 

A primeira peça que encenamos foi “A Noviça Rebelde”. Uma noviça light, na verdade, até porque éramos todos crianças e nazismo não era muito um assunto do nosso vocabulário. Por ser a primeira turma, tínhamos certas colheres de chá. Por exemplo, o capitão Von Trapp era interpretado pelo nosso professor, o que é um tanto perturbador quando vejo com olhos de hoje. Outra coisa, nós dublávamos as músicas da produção de Möeller e Botelho de 2009. Quase todas, na verdade. Menos uma.

Edelweiss. Essa a gente cantava de verdade.

Nem sabia o que ela significava. Nem que o título era uma flor da Áustria e o contexto geopolítico daquela época. Mas a canção me abraçava. Me dava uma sensação de pertencimento.

Eu com sete anos, em 2012, cantando Edelweiss. Sim, eu era o mordomo. 
Sim eu estava de terno E TÊNIS.

Nove anos depois, em uma aula sobre história do teatro musical, do curso histórico ministrado pela rainha Beatriz Lucci, descobri que Edelweiss foi a última canção escrita por Oscar Hammerstein II antes de morrer.

E eu só conseguia pensar em legado. Como a canção que marcou o início da minha jornada no teatro musical foi a última da jornada de uns dos maiores gênios dessa arte.

Hoje, não me vejo mais nos palcos. E isso, de certa forma, faz sentido, porque o momento em que me apaixonei pelo teatro foi justamente nos bastidores.

Na verdade, hoje, exatamente no dia 30 de Março, 13 anos depois daquele fatídico dia, estou em São Paulo. Acabei de chegar em casa, depois de ter visto Wicked, a convite de um amigo muito querido meu. Mesmo depois de tantos anos estudando sobre, produzindo sobre e me encantando por essa forma de arte, nunca tinha assistido uma montagem sequer ao vivo.

Sim. Esse foi meu primeiro musical. É doido, né?

O teatro musical é uma arte raríssima, que precisa movimentar centenas de pessoas para funcionar. Um fenômeno, um encontro que tive a sorte de presenciar. E eu, na fileira H, assistindo uma mulher pintada de verde pendurada por cabos em cima de mim.

E sabe o pior?

Chorei. Chorei MUITO. E olha que Wicked nunca encheu muito os meus olhos, também nunca foi meu musical favorito. Mas aquele momento ficou no meu coração. Porque meus olhos não estavam exclusivamente focados na bruxa verde. Meus olhos escapavam para as pessoas ao meu redor. Surpresas. Animadas. Adultos felizes como eram quando crianças. Senhorinhas com as mãos na boca, impressionadas com o final do primeiro ato. E isso me fez chorar. 

Porque ali, tive a mesma certeza de anos atrás. A mesma sensação, o mesmo cheiro de fumaça. E a mesma vontade de fazer teatro.

Miguel Magevski

Miguel Magevski é um estudante de arquitetura metido a compositor, versionista e aspirante a produtor cultural. Mora em Vitória, no Espírito Santo e é apaixonado por musicais desde pequeno. Seu hobby favorito é ter opiniões fortes sobre assuntos aleatórios e guardar o máximo de curiosidades inúteis possíveis. Afinal, é pra isso que serve a vida, não é?

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