As cidades e os seus fantasmas da ópera: contar para lembrar

Arte feita com exclusividade para a Broadway Meme pela artista Suzie Samico

Belo Horizonte foi uma cidade pensada. Ela tinha um objetivo de ser a grande capital do Estado, e acabou sendo. Mas quando digo pensada, é importante dizer que estamos falando de um certo grupo de pessoas, poucas e poderosas, que decidiram que este pedacinho de terra seria um ótimo lugar para se construir uma cidade. Só que este pequeno pedacinho de terra já era habitado, e tinha até nome: Curral del Rei.

Curral del Rei era, em meados dos 1700, uma fazenda, um ótimo ponto de parada para a estrada do ouro que ficava logo adiante (Ouro Preto, Mariana e afins), e sendo parte de uma rota importante muitas pessoas iam se achegando, ficando, construindo seus casebres, encontrando trabalho na fazenda, e formando, assim, uma vila que mais tarde – beem mais tarde – se tornaria a cidade que hoje amo, vivo, e pretendo viver até ficar bem velhinha – ou até que a especulação imobiliária e a gentrificação permitam.

Mas por que diabos estou falando de Belo Horizonte num texto sobre Fantasma da Ópera? Bem, adiamo!

Um tema que me interessa bastante são as cidades e seus símbolos. Um tema que não é meu, inclusive. Ele pertence a uma pesquisadora pernambucana que na verdade é mais mineira que muito mineiro: a Maria de Lourdes Gouveia. Ela estuda a relação entre as pessoas e os lugares onde elas vivem, a maneira como as cidades vão se moldando aos tempos, e como as pessoas participam – ou são vítimas – disso.

Maria tem uma frase que sempre me pega. Ela disse uma vez, numa palestra na Academia de Letras de Minas Gerais, que BH é uma cidade que devora a si mesma. Até hoje penso nisso. Porque nesse devorar as pessoas vão junto, sendo enterradas com as suas casas num apanhado que os ricos chamam de progresso. BH é uma cidade ótima, e vai continuar sendo meu grande amor, mas é impossível não ver seus fantasmas. É impossível não os escutar a cada esquina.

E sabe de que maneira muitos desses fantasmas continuaram vivos? Virando lendas. Se tornando histórias de terror que não são lá tão ficção assim.

Para contar um pouco dessa história, conversei com um amigo que é um grande amante da literatura de horror, e que por muitos anos estudou justamente essas lendas que fazem parte do imaginário belo-horizontino e foram apagadas pela história – mas não pela cultura da contação de causos. E é através desses causos, dessa oralidade linda, que permite que estórias ultrapassem a desimportância dada aos que controlam as narrativas e cheguem até nós, desenterrando os ossos que foram enterrados sem voz.

Maria Papuda é um desses fantasmas. Reza a lenda que ela era uma mulher com bócio, aquela doença que faz com que a tireoide aumente bastante, deixando a região do pescoço inchada. Bem, Maria tinha um casebre, e esse casebre ficava bem onde era interessante construir um prediozinho básico, que inclusive, é cartão postal da cidade: o Palácio da Liberdade (irônico, né? Enfim). Maria foi expulsa da sua casa para que o projeto da cidade mineira pudesse ser concretizado. Já estava decidido que seria construído ali, onde ela morava, mas ela nunca foi consultada a respeito.

Parece familiar? Enfim, a história continua se repetindo, e as vezes fico confusa. O fato é que ela fora expulsa, assim como tantos outros moradores do arraial, porque havia um projeto, e esse projeto de cidade, engraçado!, não levava a população em conta – pelo menos, não toda a população, só uma pequena parte dela (sempre isso, né? de novo e de novo e de novo). Afinal de contas, o que é um casebre, certo? Se está construído aqui, pode ser construído em outro lugar. É só um pedaço de terra. O Palácio da Liberdade precisava ser ali. A Afonso Pena, corredor colonial inspirado nas ruas parisienses, precisava ser lá. Então, obviamente, aquelas pessoas sem importância precisavam sair.

E foi assim que Maria Papuda gritou. E gritou muito. E grita até hoje. Sabe o meme ‘meia noite te conto um segredo’? Bem, em BH, se você passar perto do Palácio, a frase toma um sentido um pouco mais assustador porque você pode, de fato, acabar ouvindo a Maria Papuda gritar. Gritar as dores de ter sido tirada da sua casa. Da sua terra. Das suas memórias. Sem poder fazer nada. Então só restava a ela ser a mulher louca gritando, assombrando, arrastando correntes. Um país fundado na dor e na escravidão, no apagamento, o que me espanta mesmo é falarmos tão pouco de fantasmas.

E aí, deixando Maria Papuda descansar, vamos incomodar outro Fantasma. O da Ópera agora, finalmente. Mas o do livro por enquanto.

O autor desse livro gótico (pré-modernismo, talvez? um mix de possibilidades) foi o Gaston Leroux, que lançou entre 1909-1910. Um carinha bom de serviço que adorava um romance policial e um bom mistério, e inclusive, escreveu outras coisas boas, embora não muito lembradas pela crítica literária. No livro, sobre um homem mascarado que morava nas catacumbas da Ópera Garnier, temos muitas referências à história de Paris, especialmente a um período bem difícil da cidade: a Communa.

O Leroux era um cara de família aristocrática, mas que gostava da trabalhar. E veja bem, ele era jornalista de tribunal, ou seja, cobria os casos escabrosos envolvendo crimes. E nos horários vagos ele lia, pesquisava e escrevia romances policiais. E como jornalista, ele estava sempre atento a tudo que acontecia na cidade, e naquela época, não faltou material: tinha a Communa, mas também teve a guerra Franco-Prussiana. Só esses dois eventos históricos, por si só, já davam pano pra manga, mas ainda rolavam aqueles crimes comuns do dia a dia: um furto aqui, um latrocínio ali, uns esqueletos achados acolá. E durante a construção da ópera onde a história acontece não foi diferente.

Vamos contextualizar. A Ópera Garnier foi construída a mando de um cara que, tal como aquela cena em Shrek, estava com certeza tentando compensar outras coisas. Ela é magnífica, claro, mas… muito. Opulência para todos os lados. Napoleão tinha sido atacado no teatro onde rolavam as apresentações da época, então ele decidiu construir um outro palácio para abrir a nova casa de ópera, que seria, em tese, mais seguro. Mas é interessante notar que ela foi construída exatamente no mesmo período que estava rolando a Communa – pra quem não sabe, a população estava bem ferrada por conta da guerra e faltava muita coisa pra população, principalmente comida. Chegou ao ponto das pessoas terem que comer gatos e cachorros – sim, e o Palácio continuou a ser construído enquanto o pau quebrava.

Então, vejamos, temos aqui: um terreno pantanoso. Um lago que não se tem o que fazer, que não pode ser canalizado. A comuna comendo solta, o pessoal comendo pet, gente morrendo de formas bastante violentas, e… um palácio luxuoso sendo construído. E não parou. Quer dizer… prato cheio pra histórias de terror. Até porque as galerias nas catacumbas eram uma rota excelente para esconder fugitivos – e também corpos. Então era muito comum encontrar restos mortais humanos por lá. O que é isso? Ah, uma perna. Ok, me passa a argamassa, Maurício.

Então a Ópera Garnier foi literalmente construída em cima de esqueletos. E nem é uma metáfora. É um fato mesmo. Aqui em BH, inclusive, tentaram construir um prédio recentemente, e a obra foi embargada porque descobriram que tem um possível cemitério escravo em todo o quarteirão. Meu quarteirão, inclusive. Que estado adorável é Minas Gerais, dor e dor, trauma e trauma.

Daí fiquei pensando nisso enquanto quebrava a cabeça pra falar sobre o musical. Porque é sobre, acima de tudo, o fantasma. E ok, tem toda um romance pra lá de bizarro no livro, e uma romantização por parte do musical – e não ajuda que o Andrew continue colocando os homens mais lindos da face da terra pra interpretar um cara completamente maluco – mas o que me pega mesmo é a ideia do fantasma que arrasta sua capa. Dessa sombra que assombra um prédio histórico, a forma sem forma que arrasta corrente. Que toma para si um lugar que, talvez, fosse até seu mesmo.

Para o narrador do livro, o Fantasma da Ópera existiu. E para o Gaston Leroux, também.

E, sei lá, talvez tenha mesmo. Parece muito mais crível ele ter existido do que não ter. As cidades estão cheias de fantasmas, que muitas vezes, ou na maioria delas, são vítimas de toda uma política de exclusão. Seja pela classe social, pela raça, pelo que elas têm de diferente.

E o Fantasma da Ópera foi essa figura, essa representação.

A ideia aqui não é defender atitude nenhuma. Até por que, no livro, ele é… bem, digamos apenas que ele não tem a vulnerabilidade do Jonathan Roxmouth. Nem a beleza do Gerard Butler. Nem o apelo sex/malvado/perigoso/vozeirão do Leonardo Neiva – com todo respeito. Ele é só bem manipulador mesmo. Super condescendente. Grosseiro. E por mais que o Leroux trabalhe com o romance romântico dentro do policial, é um amor dificílimo de engolir. No musical, no entanto… É a famosa mão na consciência e um abraço, porque tem uma coisa nas figuras escuras com problemas emocionais gravíssimos que pegam a gente, né? Mas isso é tema pra outro ensaio (um que eu cite Freud, provavelmente, ou escreva depois de algumas sessões de psicanálise) – e que ninguém aqui me julgue, por favor, a gente gosta de musical e literalmente todos eles têm figuras altamente problemáticas.

Pois bem.

Estou há dois meses quebrando a cabeça pensando em como começar esse texto. Pensei na estrutura: seria um ensaio? Um artigo? Uma crônica? Um poema? Uma dança no tiktok? Comecei e apaguei e escrevi e reescrevi incontáveis vezes, e nada me pareceu satisfatório o suficiente. E agora, a Música da Noite está prestes a tocar uma última vez no Majestic Theatre e eu comecei escrevendo sobre a minha própria cidade e nos seus fantasmas da ópera. Não foram escritos romances sobre eles – ainda – mas é incrível o poder que a cultura e a arte tem de trazer essas figuras e as discussões que elas carregam para o centro.

Querem ver? Vou fazer diferente do que costumo fazer e trazer números. Assim, bem frio. Bem brusco. Sem floreios.

14.000 apresentações. 35 anos em cartaz. Mais de 145 milhões de expectadores. 41 países. Mais de 1,3 bilhão de dólares arrecado em vendas ao longo das décadas em cartaz. Geração de empregos (algo em torno dos 6.500) apenas na cidade de Nova York – alguns funcionários, inclusive, estão no musical desde a abertura láa em 1988. Sete Tony Awards, entre outros prêmios importantes do teatro.

Bom.

Parecem só dados, né? Números, valores, etc. Números enormes, claro. Mas o que eles representam? O que significa essa quantidade de gente? Então voltei pra esse número. 145 milhões de pessoas. Imagina o que o show significou para cada uma delas? Engraçado como vivemos o auge do selfie na literatura, na arte, na cultura e na sociedade, e estejamos, ao mesmo tempo, tão despersonalizados. Precisei parar para pensar e entender que é gente pra caramba, e que cada uma dessas pessoas tem uma história pra contar. Nem que seja a mais cotidiana, a mais básica, a mais chata. É um detalhe do dia que ela foi assistir ao musical do cara mascarado.

E, claro, não tenho a ilusão de dizer que todo mundo que foi ama o musical. Não. Tiveram as que foram parar ali de paraquedas. As que foram acompanhando os parceiros. Os que falaram: estou turistando em NY, preciso bater o ponto de turista assistindo um musical e rei leão não estava disponível. Teve, claro, a Fran Lebowitz – que absolutamente detestou. É justo. Mas gosto de pensar que a maioria esmagadora de espectadores realmente queria estar lá, assistindo, vivendo esse sonho, esse deslumbramento. Afinal de contas, dificilmente se mantém um musical por quase quatro décadas em cartaz se não fosse importante. Se não tivesse história. Se não tivesse significado.

E aí a minha mente viajou nas possibilidades.

No homem que faz o polimento do lustre. E na violinista que está lá desde a primeira noite. E nos 16 phantoms que passaram e deixaram sua marca. E nos profissionais que formaram suas famílias graças a estabilidade que phantom dava a elas, visto que o teatro musical não é lá uma área muito constante. E nas crianças que assistiram ao show na Broadway e hoje estão brilhando nos palcos. São tantas histórias que seria impossível contar todas – e eu tentei.

Por que, veja bem, acontece que eu sou uma fã. E se morasse em NY, com certeza seria uma repeat attender – leia aqui para entender. Mas como fui impossibilitada por barreiras geográficas, tive que me contentar em assistir ao filme cerca de *** vezes (sim, é um número de três dígitos que pode ir de 100 a 999, você escolhe). E sendo uma grande fã, e mais ainda, uma obcecada por histórias, corri atrás de várias delas. Foram anos de fandom, de fanfics, de tumblrs, de discord, de sessões de sábado assistindo diferentes versões do musical, enfim… tem MUITA coisa, e MUITA gente envolvida. Pessoas que já assistiam à peça antes mesmo de eu nascer. Pessoas que se tornaram amigas de uma vida por causa de phantom. Que se sentiram acolhidas, vistas, entendidas. E, uau, é desse poder que falei ali em cima. Não tem um só dia que não fique pasma com isso, mas pesquisar para escrever esse texto me deu uma perspectiva totalmente nova de tudo.

A vida aconteceu do lado de fora do teatro para todas essas pessoas enquanto o Fantasma sofria a sua história de amor obsessiva várias e várias vezes ao longo dos anos. Não é maluco? É como se a vida toda acontecesse lá fora, mas o ambiente do teatro permanecesse intocado pelo tempo, pela correria da vida externa, como um espaço seguro.

O musical em cartaz a 35 anos no Majestic Theatre permitiu que a vida de centenas de trabalhadores fosse menos difícil, menos inconstante. Alguns começaram solteiros e hoje são avós. Uns começaram compensando o salário de músico com outros três trabalhos alternativos. E a estabilidade de phantom permitiu uma qualidade de vida infinitamente maior. Segurança te permite pensar no futuro, fazer planos, ter a calmaria de uma conta paga. Romantizar pobreza e arte é ultrapassado. Viver na corda bamba, sem expectativas, não te faz um artista melhor.

Não estou dizendo que todos os musicais deveriam ficar 35 anos em cartaz, obviamente, porque isso se prova cada vez mais insustentável. E é por isso que Fantasma da Ópera sempre vai ser grandão.

E isso tudo porque provavelmente uma pessoa viveu, sim, nas catacumbas da Ópera de Paris, que fez surgirem boatos, mitos, lendas. E isso foi parar nas mãos de um jornalista que amava romances policiais. E de repente, um fantasma esquecido de uma ópera grandiosa tomou todo o protagonismo para si. Hoje você pode até dormir na Ópera Garnier se quiser – e custa 40 dólares. Quer dizer… para mim, isso é mágico pra cacete.

“Sim, embora tivesse o aspecto de um verdadeiro fantasma, isto é, de uma sombra, ele foi todo carne e osso.”

 

 

Arte da capa: Suzie Samico @suziesamico

Citação: Gaston Leroux, prólogo

Agradecimentos especiais a toda equipe da BM, que me permite continuar escrevendo nesse espaço que amo e sempre dá forças para as minhas maluquices. Agradecimento especial, também, aos atores que toparam mandar uma mensagem para a BM para nos despedirmos juntos de Phantom. E um agradecimento mais do que especial a Suzie Samico, essa artista absurda de incrível que transborda talento. 

Brígida Rodrigues

Olá! Eu sou a Brígida, estudo Letras e sou uma completa apaixonada por Teatro Musical. Como os meus amigos não aguentam mais me ouvir falar da Broadway e afins, estou aqui para compartilhar um pouquinho desse amor com vocês.

Post navigation

1 Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *