BM escreve: O civil, o fã e a bolha do mercado

Se você acompanha o Twitter da Broadway Meme, é capaz de um link de uma pesquisa ter aparecido na sua timeline nesse último mês. Fui eu, na verdade, invadindo a conta deles e tentando alcançar uma amostragem maior de respostas.

Tá, mas eu estava pesquisando o quê?

De antemão, já quero estabelecer o termo ‘civil’. Não lembro de onde ouvi isso, acho que no MusicalCast, mas vejo muito sentido em chamar os ‘não-fãs de musicais’ como civis. Gente normal mesmo, que trabalha, paga suas contas, vai ao teatro uma vez ao ano e não sabe o que significa ensemble.

Acho importante esclarecer também que essa consultoria pública não tem caráter científico, a amostragem foi completamente aleatória e estou aqui pela vibe, ok?

Então bora lá: no formulário disponibilizado busquei saber qual é a visão da galera que NÃO acompanha teatro musical e trago aqui alguns dos resultados.

PARTE 1: O CIVIL

Primeiro: o que mais me deixou surpreso é que mais de metade dos civis alega saber o que um produtor de teatro musical faz.

Não esperava mesmo esse resultado. Até porque – quando eu dizia aos meus amigos de ensino médio que queria ser produtor ou quando conversava sobre o futuro com a coordenadora da escola – sempre tive que explicar o que um produtor fazia.

Fiquei feliz, na verdade, com o resultado, mas por vivência própria, acredito que ele seria um tanto diferente se fosse realmente uma pesquisa com método.

Tá, mas o que um produtor faz?

Para o Dicionário Priberam, produtor é a “Pessoa ou empresa que reúne o conjunto dos elementos necessários (meios financeiros, recrutamento do pessoal, etc.) à realização de um filme, disco, etc.” 

Pense que um musical é um navio, onde o diretor é o capitão, os técnicos são os tripulantes e os passageiros, a plateia. Nesse contexto, o produtor seria um funcionário da empresa que construiu a embarcação. Ele fez parte do levantamento dos orçamentos, da contratação dos engenheiros e arquitetos (equipe criativa), das vendas das passagens (ingressos) e todas as outras frentes que permitiram que o navio estivesse em alto-mar (em cartaz).

O rolê é que essa profissão é inacessível ao grande público. Nas feiras de profissão do ensino médio e nas listas de cursos ofertados em grandes faculdades não se lê ‘Bacharel em Produção para Teatro Musical’, e está aí grande parte do problema: a falta de capacitação.

Tudo bem,  sei que tiveram exemplos como o do Sesi, que desenvolveu um Curso Técnico em Teatro Musical e produziu musicais de selo Broadway com ingressos gratuitos. 

Vale lembrar que esse curso, enquanto durou, foi o único a ter credenciamento do MEC para oferecer e certificar o diploma técnico. Isso é incrível.

Premissas como as do Cena1 também são significativas. Ensinar canto, dança e interpretação de graça para um grupo de talentos de todo o Brasil durante um ano? FODA.

Mas você vê um padrão se repetindo?

Todos esses avanços, por mais que válidos, de academizar o teatro musical, se concentram só na performance. Todos eles estão voltados ao ato de subir num palco e encarar uma plateia. 

Veja bem, eu não estou menosprezando o estudo das artes cênicas, acho ele imprescindível. Mas uma produção de grande porte emprega diretamente, por alto, 300 pessoas. Um elenco é dez por cento disso.

Num mundo perfeito, todo mundo que está acima do palco teria um diploma para isso. Assim como aqueles  que orbitam em torno disso: camareiros, designers de luz e som, peruqueiros, microfonistas, stage managers e assim vai. Incluindo produtores de teatro musical.

Em Nova York, por exemplo, o BMI Lehman Engel é uma incubadora de compositores e letristas que, de tão bons, praticamente já saem de lá direto para a cerimônia do Tony. É tipo um Cena1 para compositores. 

É de lá que saíram Alan Menken (A Bela e a Fera; Little Shop of Horrors), Robert Lopez (The Book of Mormon; Frozen) e várias outras mentes geniais.

Quando se discute por que não temos tantos musicais completamente autorais no Brasil, muito se fala sobre a falta de investimento – que realmente é um dos motivos. Mas pouco se fala sobre a falta de capacitação. Libretistas, compositores e letristas não têm onde se formar.

Façam o experimento de entrar na Amazon e pesquisar por livros técnicos e teóricos sobre teatro musical. Os valores são absurdos. Todos em inglês.

O que essa galera faz é uma coisa muito específica e as pessoas que hoje são ativas no mercado tiveram que, ou estudar no exterior, ou ralar para estudar por conta própria porque não existe suporte acadêmico. 

Em uma outra pergunta, busquei saber qual o número de empregados de uma produção de grande porte que um civil estimaria.

Sei que eu meio que já respondi isso, mas, sem brincadeira, as respostas variaram de 20 a 2000 pessoas contratadas, com média de 273. Tudo bem, o intervalo foi gigante, mas a média está bem dentro do padrão.

Queria muito entender o que se passa na cabeça da pessoa que considera que uma produção de grande porte só tem 20 empregados. É um nível absurdo de desprendimento da realidade.

Mas é um desprendimento da nossa realidade.

Se eu perguntasse quanto está custando a ação da Petrobras hoje ou, quantos empregados a Nubank tem, as chances de um fã de musical acertar são bem baixas.

A questão não é sobre julgar quem é alheio, é sobre entender o porquê esse alguém não tem acesso a essa informação. Por que, no final das contas, é um subsídio estatal que financia a sobrevivência desses empregados todos. De certa forma, é dinheiro de civil.

Na última pergunta que eu trago aqui, quis saber o quanto um civil acha que uma produção de grande porte custa. Em milhões de reais.

Acredito que se não tivesse colocado ‘Em milhões de reais’ no final da pergunta, as respostas seriam bem diferentes. Até porque teve gente que, mesmo assim, colocou ‘70 mil reais’.

Aí fica o questionamento: em qual mundo uma produção de grande porte, que chega a empregar 300 pessoas, que sustenta 300 famílias, custa 70 mil reais?

Mas, no fim de tudo, pode-se dizer que o resultado geral foi satisfatório, as respostas variaram de 0,07 milhões a 500 milhões (Um belo de um exagero mas gostei da confiança!), tendo como em média um valor de 16 milhões.

Quem é ‘rato de Versalic’ sabe que 16 milhões é um valor até que considerável, e que a média das produções de grande porte aqui do Brasil costuma oscilar entre 8 milhões e 25 milhões.

O que mais me preocupa é que, no fim das contas, esse mercado só existe porque existe uma lei.

Parágrafos. Num livro. É isso que sustenta toda essa gente.

E que apenas um voto de um parlamentar qualquer pode mudar isso do dia para noite (mentira, não funciona assim – mas quase). 

Ainda assim, o mundo está numa crescente política conservadora que é vinculada ao retrocesso da cultura. Acabamos de presenciar um governo que baixou o teto das produções de artes cênicas pela Lei de Incentivo à Cultura a um milhão de reais. O ex-presidente chegou a chamar a Lei de “Desgraça” e foi demagogo ao dizer que “artistas recebiam até 60 milhões”.

Por pouco, por muito pouco mesmo, o nosso mercado não acabou.

Essa lei, que certamente pouca gente sabe como funciona, funciona com dinheiro público. Tudo bem, não é diretamente do dinheiro de caixa do governo, mas é público. E ver toda essa galera que não se preocupa nem em entender como seu país funciona, onde seu dinheiro caminha, e para onde ele está sendo direcionado, é triste.

As Leis de Incentivo à Cultura, principalmente a federal, são transparentes. Os dados estão aí, na internet. Quem quer, acha. 

Essas pessoas, apáticas, têm olhos desatentos que ignoram um setor inteiro da nossa economia. Não acho que todo mundo é obrigado a saber quanto custa um musical, não é sobre isso. É só doido observar que realmente parte do grande público não faz nem ideia.

PARTE 2: O FÃ

Imagina que lindo. Você, com chapéu de bruxa, na porta do Teatro Renault em 2016. Ansioso para assistir Wicked. Pena que as letras agora são em português e você não vai poder cantar Defying Gravity do jeito que aprendeu em Glee.

E aí, no fim da peça, você se apaixonou. E desde então, frequenta todos os musicais em cartaz.

É assim que começa. Fãs que já foram civis.

A partir do momento que um civil se torna fã, a essa pessoa é atribuída uma responsabilidade. A responsabilidade de conhecer, para além da superficialidade, seu assunto favorito. Mas, acima de tudo, defender seu assunto favorito.

A questão é que ando vendo uma crescente de fãs que, de certa forma, são apáticos, que não entendem seu papel no mercado.

Não quero propriamente entrar nesse assunto, até porque creio que ele merece seu próprio texto, mas recentemente, muitos fãs de Wicked (eles mesmo, os dos 30 ingressos) sofreram ofensas na internet por – simplesmente – gostarem do musical.

Aí você me pergunta: quem ofendeu os fãs de musical?

Os próprios fãs de musical.

Não quero propor um estado de paz entre fãs, muito menos quero legitimar certas discussões que nem deveriam existir. Só quero mostrar a discrepância das visões.

Por um lado, o teatro musical é uma arte muito elitizada. E mesmo que seja, em grande parte, “entretenimento de gente rica”, ainda é bombardeado por todos aqueles que não o julgam merecedor de investimento.

Por outro, seus próprios consumidores se atacam, quando, na visão macroestrutural, eles são minoria. No final das contas, são meia dúzia de pessoas que ficam na stagedoor esperando seus ídolos. No final das contas, aquele ator incrível ganhador de vários Bibi’s Ferreira só é reconhecido nos arredores do teatro e olhe lá.

E mesmo assim, a galera ainda se ataca por consumir o que gosta de consumir.

A verdade é que todo mundo teve seu momento Wicked. Não necessariamente entrando no Teatro Renault com chapéu de bruxa, nem mesmo com esse musical em específico. Eu, por exemplo, narrei meu momento Wicked (que não foi com Wicked) em um dos meus textos publicados aqui

Todo fã já foi civil. Do mesmo jeito que todo membro do mercado já foi fã.

É responsabilidade do fã ser um  alicerce da cultura. De discutir com aquele que seu tio que não para de falar da Claudia Raia e seus 5 milhões, mas não sabe que o mercado automotivo suga 5 bilhões por ano através de incentivos fiscais diretos, enquanto o orçamento da cultura de 2022 foi de meros 1,68 bi.

PARTE 3: A BOLHA

Recentemente alguns tweets do Pedro Romani, do Atelier de Cultura, estourou no Mundinho Teatro Musical Br™.  O que o provocou a escrever essa thread, na verdade, foram certos comentários ofensivos relacionados a Wicked. Mas não é mais sobre isso que eu quero falar.

Quero falar desse trecho aqui:

Acho que a conclusão mais óbvia é que, no fim das contas, esse mercado é como uma cidade de interior. Fechado, com suas próprias fofocas, problemáticas e discussões. Reclamamos dos valores absurdos de ingressos em um país onde o debate principal é o preço da comida.

E de novo, veja bem, o problema não é a gente. Mesmo. De todo modo, isso é só mais um sintoma de como a cultura é sucateada no nosso país. No Brasil, teatro é trabalho de escola do ensino fundamental. E só.

Juro que isso vai fazer sentido, mas vou viajar um pouco agora. No iluminismo foi criado o projeto de modernidade. Os homens da época acharam novas respostas para as três perguntas máximas: 

De onde viemos, o que antes era Deus Criador, agora, é um ancestral em comum com os primatas. Quem somos, os antigos filhos de Deus, agora são Homo Sapiens. Para onde vamos, o que antes era o céu, agora somos parte do ciclo trófico.

Acredito que resta para nós como um mercado criar um ‘projeto de modernidade’. Devemos achar respostas para as perguntas máximas.

Repare na primeira pessoa do plural. Nós. Eu me incluo nessa, mesmo ainda não fazendo teatro, porque escrevo sobre.

Não dá pra negar que, com a chegada de Les Mis junto da CIE Brasil no início dos anos 2000, retomando o projeto que Victor Berbara começou na década de 60, o nosso mercado nasceu dos gringos.

Repare que eu digo que o mercado nasceu dos gringos. Já a arte, não. Temos séculos de desenvolvimento do teatro no Brasil, séculos estes que não podem ser ignorados nesse tipo de levantamento. Mas aqui, eu faço uma análise rasa e mercadológica.

O rolê é que os gringos eram os detentores da tecnologia, dos processos de produção e elaboração.

E, acima de tudo, eles eram os donos das histórias.

Existe um motivo de dizermos Stage Manager e não Gerente de Palco. Existe um motivo pelo qual o título ‘Broadway’ vende.

Agora, quem somos?

Somos poucos, num país governado pelo agronegócio, que acreditam na cultura. Somos poucos, mas nossas plateias, não.

Nossas vozes já são microfonadas, temos a chance de conquistar esses civis, trazê-los para o nosso lado. Pra mim, um dos momentos mais importantes de uma noite no teatro está nos agradecimentos finais, quando o elenco diz o nome dos patrocinadores. Quase nenhum outro país tem uma estrutura de incentivo fiscal como o Brasil. E isso deve ser enaltecido.

Para onde vamos? É aí que as respostas divergem.

Acredito que está na hora de contarmos nossas próprias histórias. Acredito que não-réplicas também são muito bem-vindas quando guiadas por brasileiros. Já importamos musicais, estamos fazendo os nossos próprios e agora é hora de exportarmos nossas ideias e montagens.

Muitos civis ainda irão chegar do teatro transformados pelo teatro. 

Muitos fãs ainda vão ter o prazer de subir num palco para tirar uma foto com uma vassoura. 

Muitos técnicos, atores, produtores e criativos ainda vão dormir, felizes, por fazerem o que amam.

Mas assim,  sou um zé-ninguém no meio da galera, né? Quem sou eu pra dar pitaco! 

(Depois de escrever vários pitacos)

BM

Autor: Miguel Magevski
Edição: Brígida Rodrigues

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Miguel Magevski

Miguel Magevski é um estudante de arquitetura metido a compositor, versionista e aspirante a produtor cultural. Mora em Vitória, no Espírito Santo e é apaixonado por musicais desde pequeno. Seu hobby favorito é ter opiniões fortes sobre assuntos aleatórios e guardar o máximo de curiosidades inúteis possíveis. Afinal, é pra isso que serve a vida, não é?

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