Por Dentro da Trilha: As Versões de ‘Naked Boys Singing’ com Rafael Oliveira

Profissão: Versionista
Naked Boys Singing

Fotografia: Caio Gallucci (@caiogallucci).

Quando o Alexandre de Marco da Bacana Produções, a produtora do “Naked Boys Singing”, me convidou para conversarmos na mansão dele na área nobre (porque é isso que a gente sonha, né? Que os produtores moram numa mega mansão milionária) eu, como bem sucedido versionista que sou, aceitei no ato.

Aí eu acordei do meu sonho. A vida do versionista (pelo menos a minha) não é esse glamour todo não. Nos encontramos na praça de alimentação do Shopping mesmo e resolvemos tudo ali em 2019. Isso mesmo, dois anos antes do musical estrear. O versionista é um dos primeiros profissionais da equipe criativa a botar a mão na massa. Por isso (infelizmente) ele com frequência é esquecido por todos quando o musical estreia, o que faz as pessoas pensarem que o musical é traduzido sozinho e “versionista” é uma espécie de gnomo neozelandês ou outro ser mitológico.

O primeiro passo é conhecer a obra. Eu, que sou uma gay cacura, tirei o pó do meu DVD original da montagem norte-americana e fui assistir ao musical, mas, desta vez, tentando me distrair menos e focando nas letras das canções. É importante prestar bastante atenção onde a versão pode afetar a forma como a peça é encenada. Por exemplo, na canção Jack’s Song, os atores fazem uma percussão com batedores de carne. Se a versão mudar, usar um batedor de carne pode deixar de fazer sentido e esta decisão afeta muita gente: o aderecista que providenciará os objetos de cena, o diretor de cena, o coreógrafo… Enfim, não é uma decisão que pode ser tomada sem consideração alguma, apenas pensando no que rima melhor…

Feito isso, é preciso entender se a montagem brasileira vai seguir a mesma linha da montagem original. Se não for, adaptações precisam ser feitas. Conversando com o Rodrigo Alfer, diretor do espetáculo nesta nova montagem brasileira, alinhamos alguns conceitos e expectativas e fiquei muito feliz em saber que ele já tinha algumas ideias pré-estabelecidas para as versões. Por exemplo, ele já sabia que o ator que dá título à canção Robert Mitchum no original, seria substituído por Mazaroppi, o que eu amei, não porque foi uma ideia excelente, mas porque quando comparamos com o original, tem exatamente o mesmo número de sílabas e com as tônicas nos mesmos lugares, quer dizer, encaixe perfeito!

E só depois de toda essa pesquisa que o trabalho efetivo de versionar cada canção começa. Você, leitor ou leitora, deve imaginar que eu vou me sentar na frente do meu super computador, na minha casa de praia onde não serei incomodado, e vou fluidamente escrever cada uma das versões, certo? Então. A realidade é outra. A busca da palavra perfeita nunca para. E eu aproveito todo o meu tempo livre para fazer versão. Algumas são feitas andando de ônibus, outras na fila do supermercado, e outras, digamos, surgem quando estou “meditando” no banheiro. E assim as versões vão surgindo… Palavra a palavra, verso a verso, estrofe a estrofe. E, dica de ouro para aspirantes a versionistas: se a rima perfeita aparecer pra você, de repente, enquanto estiver tomando banho ou quando você vai dormir, pare tudo o que está fazendo e anote, caso contrário você vai esquecer e se arrepender depois.

Assim, aos poucos, as versões vão surgindo. O processo às vezes é rápido… Em cerca de uma ou duas horas a versão de uma música fica pronta. Outras vezes a inspiração não vem, a palavra foge, a rima não fica boa e, quando isso acontece, o importante é seguir em frente, uma palavra de cada vez, sem se preocupar muito se ficou bom ou ruim. Depois sempre podemos voltar e melhorar o que não ficou tão bom. O importante é não “barrar” a criatividade. Ela precisa de liberdade para fluir.

Uma vez pronta, se houver tempo, deixo a versão de molho por uma semana para depois analisá-la novamente. A ideia maravilhosa que eu tive às 3 da manhã depois de ficar um tempão pensando numa solução nem sempre continua sendo maravilhosa quando relida com uma cabeça fresca. Ajustes são feitos e, em seguida, a versão é enviada para Lia Bittencourt, minha revisora de texto, para garantir que os personagens vão falar o mais correto possível. Acredite, falamos MUITA coisa gramaticalmente errada, sem saber.

A versão retorna, se necessário faço mais algum ajuste e só depois disso que o material vai chegar nas mãos do restante da equipe criativa. Já trabalhei com profissionais que simplesmente ignoram a versão. Fazem seu trabalho todo em cima do original. Felizmente, no caso do Naked Boys Singing, esse não foi o caso. Toda a equipe criativa, sem exceção, trabalhou junto com as versões para fazer com que elas fizessem parte intrínseca do espetáculo. É fácil lembrar das contribuições do Ettore Veríssimo, diretor musical do espetáculo, já que ele trabalha diretamente com as versões, mas nesta produção tive ajuda de todos, até mesmo do Rafael Gamboa, o copista. (Se o versionista às vezes é esquecido no churrasco, imagina o copista… Não, ele não é a pessoa que trabalha na copa do espetáculo. Copista é o profissional que transcreve todas as partituras do musical).

Um excelente exemplo está na canção The naked maid que, em bom português, ficou O diarista nu, onde escrevi o seguinte verso:

É HORA DE_IR EMBORA,_EU FECHO_A PORTA_E_APAGO_A LUZ
É BOM SABER QUE_EU POSSO SER SEU DIARISTA NU

Repare ali na rima, um tanto forçada, entre “luz” e “nu” (pra me defender, é difícil pra caramba rimar uma música inteira com “nu”). Tuuuuuudo bem, eu admito, a rima é péssima. Mas você nem percebe tanto pois o Alexandre de Marco, o cenógrafo colocou uma luz e um interruptor em cena para que o ator pudesse literalmente apagar a luz, e com ajuda do Alex Martins que terminou a coreografia perto do interruptor no momento certo, da direção de cena que determinou que a ação de apagar a luz aconteceria, da Érika Altimayer, preparadora de elenco, que contribuiu para que tudo ficasse natural e, claro, do João Hespanholeto, o ator que interpreta esta canção, que executa isso tudo com maestria, a minha rima podre fica perfeitamente encaixada no espetáculo.

E assim seguiu o processo. E as versões foram mudando para servir às necessidades da equipe criativa e também para se encaixarem melhor na boca dos atores. Em alguns casos, de forma sutil, uma sílaba a mais ou a menos… Já em outros, como na canção Rato de Academia (Muscle Addiction) onde a estrofe final foi totalmente alterada, refletindo melhor os valores do espetáculo:

Versão proposta originalmente

VOCÊ TEM QUE_ACORDAR DE MADRUGA/DA
SE QUER VIRAR A BARBIE MAIS BOMBA/DA
COMER SÓ PROTEÍNA E SALA/DA
PRA QUEM QUER SER UM… “BOY” PADRÃO

Versão proposta pelos atores

NÃO TEM QUE ACORDAR DE MADRUGA/DA
E NEM FICAR A BARBIE MAIS BOMBA/DA
A VIDA_É MAIS QUE SÓ COMER SALADA
NÃO TENTE SER UM… “BOY” PADRÃO

E este foi o processo de versionar Naked Boys Singing Brasil. Se você chegou até aqui, meu muito obrigado pelo seu interesse, e para saber em primeira mão de novas versões do Musical em Bom Português, é só me seguir! @musicalembomportugues ou, se você quiser bater um papo, me segue no @rafaelfso 😊. Gostou do texto, compartilha, deixa um comentário aí em baixo. Bora fazer barulho e assim quem sabe no próximo mês eu conto como a Fernanda Chamma me convidou para sua mansão na área nobre para falarmos sobre as versões de Heathers…

Um abraço e até a próxima!

Jackson Guilherme

No proshot mais claro, na gravação mais densa, os palcos tremerão ante a minha presença. Olá, meu nome é Jack e eu sou o recifense do rolê! Minha especialidade são memes e piadas ruins, mas no meu tempo livre, sou graduando em Letras — apesar de um pézinho meu estar no jornalismo e o outro estar sapateando ao ritmo do teatro musical.

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2 Comentários

  • Esse texto tá tão tão incrível. É muito bom poder conhecer mais de uma profissão e de um fazer no teatro musical que é crucial e pouca gente entende como funciona. Amei amei. E que escrita fluida <3 parabéns!

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