O Rei Leão: Revivendo um legado através da representatividade africana

 “O Rei Leão” é um musical que atravessou gerações, começando na animação original que ainda carrega muita emoção e sentimento de nostalgia, foi adaptado então para o filme live action, que espelha um visual e modelo inspirado nos vídeos e fotografia da revista National Geographic e é claro, para montagem em modelo de teatro musical. Sua nova face conquistou mais fãs contemporâneos na Broadway e em 21 países ao redor do mundo (Michael Cassel Group), agora 22 em 2024, com sua temporada no Brasil. Entretanto, apesar do grande sucesso desta história, ela também carrega uma grande problemática que foi sendo questionada ao longo dos anos: seu valor como uma representação africana. 

Por Divulgação T4f

Existem poucas peças teatrais que furam a bolha do grande público popular que se passam na África ou tem elementos africanos, muito menos musicais. “O Rei Leão” é o exemplo mais memorável, talvez o único, mas, em suas versões em filme, possui pouco da diversidade cultural do continente. Quando Julie Taymor, diretora e figurinista, começou a trabalhar numa adaptação, sabia que esse ia ser um dos pontos mais importantes: trazer a cultura africana para a montagem. E o time de produção trabalhou arduamente nessa transposição, enriquecendo três principais esferas que compõem o musical, de forma a trazer a representatividade que é tão necessária para essa obra.

História

Bom, vamos começar com o elefante na sala: sim, existem paralelos muito óbvios entre “O Rei Leão” e a obra de “Hamlet”, de William Shakespeare. Desde o assassinato do rei e a tomada de poder pelo seu irmão, até o exílio do príncipe e seu arco de retorno ao reino e requisição do seu direito ao trono, Nala e Ophelia, são muitas as comparações. Mas pouco se fala sobre seus outros paralelos. Um dos mais famosos, inclusive alvo de polêmica sobre realmente ter sido uma vítima de cópia do musical da Disney, é o mangá e, posteriormente, animação “Jungle Taitei”, ou “Kimba, o Leão Branco”. Essa obra conta a história de uma família Real de leões na África que perde seu rei para caçadores humanos, tendo sua rainha levada a um zoológico, onde dá vida a Kimba. Quando o pequeno leão descobre sua descendência, escapa para retornar ao seu lugar de direito, o trono. Mas, apesar de suas similaridades, tanto de estilo quanto de temática, carrega sentidos e filosofias bem diferentes. Vou comentar mais sobre isso mais para frente. Existe, porém, um paralelo que foi resgatado recentemente pelo historiador Abu Zayd, um pedaço da História não tão contado: a história de Sundiata Keita, conhecido e apelidado popularmente como o Leão de Mali. 

A vida de Sundiata Keita, Rei fundador do Império de Mali, hoje os países Gâmbia, Mauritânia e Mali, remonta aos anos 1235 e 1255. Dizem as narrativas que a história começa com o rei Naré Maghann Konaté, em que, dentro de uma profecia local, caso ele escolhesse uma esposa feia, ela daria luz a um menino que seria futuramente um rei excepcional. Mas, após se casar com Sogolon Kédjou e dar a luz à Sandiata, ele nasceu com dificuldades para andar. Diariamente zombado por isso, estava decidido que conseguiria andar novamente, e por algum milagre, ele conseguiu. Isso deu a ele o respeito de sua comunidade, mas também atenção bem negativa: seu meio irmão, de outra esposa, Dankaran Tourman. Então, quando o rei morreu, muitos acharam que tinha sido um complô da família real, fazendo com que todos fugissem ao exílio. Com o trono vazio, um rei bem mais severo e cruel, Soumaoro Kante de Sosso tomou o poder. Oprimida, a população mandou recados suplicando pelo retorno de Sundiata, que eventualmente retorna e toma o trono por direito, sendo então lembrado pelos seus grandes feitos como rei. Como visto, os paralelos com a história da obra da Disney são bem óbvios, dando mais autenticidade às origens africanas da história do que apenas uma releitura de Shakespeare.

Não só isso, mas o Ciclo da Vida, o lema que permeia a obra, Hakuna Matata, estilo de vida de Timão e Pumba, tiveram inspiração muito forte de filosofias de vida de povos africanos. Uma que é a base do musical é a Ntu, originária dos povos Bantus, que afirma que toda energia viva é conectada, desde um besouro até um leão, todos os seres compartilham dessa vida. Isso aparece de forma clara no musical como a moral principal da história, que é o respeito a quem ou o que nos rodeia, a última lição que Simba aprende antes de se tornar rei. Essa filosofia também remonta ao Ciclo sem Fim, pois se toda energia é compartilhada, ela também se distribui de forma fluida, em que Mufasa não está morto pois ele está vivo em todos os seres vivos, já que sua energia se redistribuiu entre eles, com um toque mais espiritual.

Outra raiz de pensamento que inspira mais a moralidade da história, que divide os protagonistas dos antagonistas, é o Kuntu. Nessa filosofia, não existe bem e mal, e  assim como na peça, o ponto é que os dois irmãos, Mufasa e Scar, têm pontos de vistas diferentes de como melhorar o reino. Mas onde Scar erra é em não respeitar a vida ao redor. Porém, não há ressentimento que parte dos leões nem dos outros animais quando Scar é retirado do trono, pois, dentro do Kuntu, errar é normal a todos os seres, e eles são sempre bons por natureza. Por isso, o fim do antagonista é dado pelas hienas, que não respeitam o Ntu nem o Kuntu.

Dentro do Kuntu também encontramos os cumprimentos Sawabona e Shikoba, na África do Sul. Sawabona significa algo como “Eu estou para você”, e Shikoba, a resposta, é “Então também estou para você”, que são frases muito poderosas de comunidade, cerne da obra, em que todos os animais participam de um mesmo grupo e equilíbrio. Como na música no musical, They Live in You (Eles vivem em você).

Visual

Além da forte inspiração subjetiva africana na obra, tiveram muitas inspirações práticas, como os visuais da montagem. Desde figurino, até cenário e coreografias, cada parte teve essa preocupação de representar a diversidade cultural africana. 

Na parte da indumentária, apesar dos bonecos e máscaras que retomam muito ao teatro japonês, que tem uma história ancestral com o uso desses artefatos cênicos e dá uma face mais crua porém elegante, a estética toda foi trabalhada em cima de adornos de tribos africanas variadas, mais alguns toques próprios de Julie Taymor, que torna os figurinos bem particulares. A estética lembra, inclusive, bastante os designs do carnaval brasileiro e outras festividades daqui, o que dá muita vantagem à adaptação para a montagem no Brasil, principalmente porque a cultura brasileira manteve, com bastante resistência, muito das suas raízes africanas, tornando esse musical tão íntimo ao público daqui. 

As escolhas de figurino foram claras quanto a uma coisa: Julie não queria nem roupas com pelugem, nem que elas apagassem os atores e dançarinos. Sendo assim, abusou dos padrões geométricos baseados em povos reais e marionetes que são grudados ao corpo dos dançarinos. Assim, eles representam animais sem parecer que estão vestindo um, mas sim unidos a um, que reflete um pouco da filosofia por trás da obra. 

Para os protagonistas, utilizou mais das máscaras e bijuteria tradicional, como miçangas, ou ossos, no caso de Scar e as hienas. 

As máscaras procuram referenciar ideias primordiais, como por exemplo a máscara de Mufasa, que é circular e de cores claras, quase douradas na luz, pois ele representa o ciclo da vida e emana uma divindade solar, real, algo que é muito comum em civilizações antepassadas e as que mantém essa ancestralidade. 

Por Divulgação T4f

Um aspecto importantíssimo é que todos os tecidos e detalhes são estampados e elaborados artesanalmente, exatamente para que não tenha nem um pingo de artificialidade na estética, e que tudo pareça muito natural. 

As maquiagens também são inspiradas por estilos de tribos africanas, como do povo Maasai, que é conhecido pelos seus pequenos detalhes no rosto como pontos e traços, e Wodaabe, que é colorida e vibrante.

Por Divulgação T4f

A coreografia não ficou para trás nessas preocupações também. Garth Fagan trouxe muitos estilos de dança tradicionais originários de regiões da África, mas também modernos, como jazz (mas não o de Chicago!) e hip hop, unindo diferentes gerações de estilos afrodescendentes. Isso porque o coreógrafo queria que a coreografia respirasse o mundo todo, já que o tema da história é universal. Seu desejo era que quem assistisse se aproximasse pelas danças contemporâneas, tivesse curiosidade pelas danças tradicionais e fosse chocado por todo o conjunto.

Som

É verdade que a música teve, na animação, algumas referências africanas, mas caem no estereótipo tribal. Apesar de serem obras marcantes e muito boas, composições de Elton John, Tim Rice, Mark Mancina e Hans Zimmer, ela ainda carrega, assim como os compositores, traços muito europeus, especificamente das músicas pop. Quando Lebo M entrou na produção, a música tomou traços mais localizados, mas ainda assim não foi tão impactante como representatividade. Por isso, tanto na versão live action quanto no teatro, elas foram revisitadas para contextualizá-las melhor. No primeiro, recebeu uma repaginada com participação da ídolo Beyoncé, enquanto na Broadway, pelo supervisor Clement Ishmael, e na montagem brasileira, por ninguém menos que Gilberto Gil. Já dá pra ver que, ao convidar músicos com experiência em musicalidade negra, remodelou bem essas novas composições. 

Djembê, tambor originário de Guiné e utilizado em cerimônias e celebrações, inclusive em contação de histórias e outras atividades comunitárias; Dundum, a percussão que tem som mais grave presente em várias regiões do continente; Bongôs, já bem famosos, de origem mais na fronteira africana com o oriente; são alguns exemplos de instrumentos que foram usados para enriquecer a sonoridade, sons fortes e impactantes, cheios de História. Mas não apenas os instrumentos contribuíram com esse enriquecimento: os cantores principais presentes na peça da Broadway são de maioria sul-africana, com o objetivo de trazer seus sotaques, dialetos, literal voz para as cenas. Quem ficou mais conhecida por isso foi Tshidi Manye, que interpretou Rafiki, com uso da língua Zulu no meio de frases em inglês, dando um toque tão especial no personagem, que reverbera o pertencimentoreverbera pertencimento.

Com essas mudanças, “O Rei Leão” conseguiu legitimar sua presença como obra artística representativa, algo que, graças à luta de vozes no mundo todo, está cada vez mais presente na mídia. Precisamos dessas obras, precisamos que todas as pessoas possam se ver em grandes histórias como protagonistas. É algo muito poderoso, por não mais invisibilizar o espaço que elas ocupam, mas celebrar. Não perca a oportunidade então de celebrar esse musical que pulsa veias africanas, renascido nos palcos como uma obra incrível, na sua montagem em São Paulo. O musical fica em cartaz na capital paulista até julho, e você ainda pode aproveitar e comprar ingressos com o cupom BROADWAYMEME para ter 15% de desconto. Vai perder? Então aproveita, que o cupom é válido só até dia 28 de abril. Corre!

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