Podemos dizer que os últimos quatro anos foram decisivos para o Teatro Musical. É evidente que as artes estão em constante mudança. Muitas das vezes – senão a maioria delas – a arte nos atropela de tal maneira que se coloca anos luz à frente da nossa compreensão, se adiantando em temas, críticas, questões que nem sempre damos conta de resolver com a consciência que temos de aqui e agora, de presente.
Portanto, seria errado dizer que a arte está mudando agora. Não, a arte está mudando sempre. Ela sempre nos provoca, nos coloca para frente, nos tira da caixinha, arranca as nossas viseiras. Nós é que não damos conta de acompanhar e, com isso, tendemos a enquadrá-la em aspectos, formas geométricas, fórmulas sociais. Mas algumas mudanças estão implorando para sair.
E entre várias delas está a importância de tornar o Teatro Musical mais acessível e inclusivo. De mostrar que é possível trazer atores com diferentes necessidades para o palco, porque no final eles são o que são: atores. E é só isso que importa.
Por isso ‘O Musical da Passarinha’, que estreou no dia 19 de fevereiro em São Paulo, é tão poderoso. Não só pela representatividade que ele traz, mas também pelos temas importantes que levanta para um público que é geralmente – e erroneamente – subestimado: as crianças.
Na história temos uma cidadezinha do interior como cenário, onde moram uma menina que sonha em assistir uma peça, um menino surdo, e uma mulher que tem nome de ópera. E é quando recebem a visita de uma cantora operística que tudo acontece.
A peça é dirigida por Emílio Rogê, nosso convidado da vez, e ele também assina o texto e as letras. A BM conversa com o diretor sobre a sua abordagem.
BM: Desde o começo você queria que a peça tivesse interpretação em Libras e audiodescrição? E você encontrou que tipos de dificuldade nesse processo?
Emílio: Desde o princípio, o projeto da Passarinha foi pensado para ser acessível. Mas ele ocorre como resultado do meu encontro com o Harry (ator e consultor em Libras do espetáculo). Em 2019, eu realizei uma audição e ele se inscreveu. E ele tinha muita vontade de estar ali, vontade e curiosidade de teatro. Me senti envergonhado por não ser capaz de recebê-lo de forma adequada. Ali, percebi que era necessário um pouco mais do que boa vontade para que o teatro fosse efetivamente para todes. Então, me joguei nesse projeto e nessa tentativa de aprender e construir junto um espetáculo que incorporasse Libras e audiodescrição desde a construção poética. A meu ver, a grande dificuldade é que tudo funcione junto, seja compreensível, seja poético e que seja um aprendizado efetivamente. O nosso tempo era curto e eram muitos aprendizados de uma vez. Numa próxima, quero investir em um período de ensaios maior. O que é complexo, pois demanda recursos humanos e financeiros.
BM: Você acha que finalmente estamos caminhando para um ponto em que as artes cênicas estão mais inclusivas?
Emílio: Para ser sincero, eu não acho. É só olhar a quantidade de espetáculos em cartaz e ver quantos deles têm nos seus elencos pessoas com deficiência. Ou ainda, quantas sessões possuem audiodescrição e/ou libras. E sem contar nos espetáculos e filmes em que contam histórias de pessoas com deficiência e essas pessoas não têm a chance nem de serem chamadas para o casting. Assumir que somos capacitistas é o primeiro passo para ir em busca de um cenário mais promissor. É possível, mas é preciso disposição para querer mudar.
BM: Quais você acha que são as maiores dificuldades, para um diretor, de buscar um elenco mais inclusivo?
Emílio: A maior dificuldade é romper o véu da ignorância. Literalmente, sair da zona de conforto. Ter coragem de assumir que é ignorante e que o cânone do teatro ocidental é capacitista e que é uma mudança por dentro mesmo. Tem que querer mudar! Pessoas existem. E são múltiplas, incríveis. Seres singulares… Essa história de perfil é furada, e no caso de pessoas com deficiência, é ainda mais violento. Repito mais uma vez: é preciso ter disposição para querer mudar.
BM: Achei incrível saber que todo o elenco aprendeu libras para a peça, e você fala da importância do artista saber essa linguagem, de tê-la no seu repertório. Fala um pouco pra gente sobre isso.
Emílio: Eu espero que um dia, aprender LIBRAS seja como aprender um segundo idioma. Que a gente tenha nas escolas. É importante. É um salto comunicacional. Além disso é uma língua muito expressiva. Nunca achei que fosse limitar o trabalho dos atores, muito ao contrário. Ela valoriza a atuação e o mais legal: chega em muito mais gente.
BM: Trabalhar com o teatro é, a priori, estar cercado de pessoas. Não é uma arte solitária, é coletiva e totalmente colaborativa. E o trabalho do diretor inclui, entre várias coisas, estar cercado de atores com personalidades diferentes, demandas diferentes, necessidades diferentes. Por que então ainda é tão difícil ver elencos com atores que sejam PcDs?
Emílio: Acho que temos dois recortes: o primeiro é financeiro mesmo. Você precisa de uma estrutura para conseguir receber bem e contratar profissionais hábeis para colaborar no projeto e na assessoria, para que consiga compreender e oferecer condições de trabalho dignas. E isso custa um dinheiro que muitas vezes (na maioria das vezes) nós não temos, especialmente no teatro independente.
E a segunda é cultural. A gente só pensa na pessoa com deficiência como sendo a própria deficiência. Então, essas pessoas serão chamadas só para esses papéis. Se forem chamadas. É uma questão de desumanização, de tirar do outro as suas possibilidades subjetivas. Precisamos lutar por um cenário mais inclusivo e onde os perfis não sejam tão determinantes para se conseguir papéis.
BM: Estava lendo um texto sobre acessibilidade no teatro, e diz o seguinte “Atores surdos ou com deficiência não devem ser incluídos para ‘inspirar’ o seu público ou para ‘ensinar’ algo aos outros membros do elenco. Eles são artistas. E trabalhar com um conjunto mais diversificado de artistas permite que nossas comunidades no palco reflitam mais nossas comunidades fora do palco. É vital trabalhar para a equidade no elenco de uma perspectiva moral e também permite que as histórias sejam contadas de maneiras mais complexas.” Você acha ‘O Musical da Passarinha’ conseguiu atingir esse objetivo?
Emílio: Esse trecho é muito bom!!! Acho que é isso, no fim das contas, não era sobre inspirar ou ensinar, eu queria uma peça em que qualquer pessoa pudesse estar em uma imersão poética transformadora. Nós amamos musicais e sabemos o quanto é arrepiante sentar-se em uma plateia pra assisti-los. Queria que mais gente pudesse sentir isso – e é como a Rita (personagem da atriz Julia Sanchez) diz na peça: cada um escuta o mundo do jeito que pode. Ainda há um longo caminho pela frente, mas que bom que começamos!
BM: Você conta que “Foi preciso inventar uma nova gramática teatral, em que nenhum sentido seja destacado em detrimento de outro”. Poderia explicar um pouco mais como isso foi feito?
Emílio: A gramática determina o conjunto de normas e regras que orientam uma língua. O teatro tem seu sistema de regras, que, na maioria das vezes, acho injusto e arbitrário. Eu acho que o teatro é um terreno de invenção. Tem que sair diferente do jeito que entrou. Então, eu duvido de tudo que dizem: mas sempre foi assim. Sempre foi assim até hoje, hoje a gente muda. E amanhã também.
Acho que a principal questão que orientou nosso processo foi não temer o desconhecido. Pois foi um mergulho no escuro. Então era outro formato de ensaios.
A dança e a música cantada, que dependem de estímulos sonoros, precisaram de novos códigos, porque além de apresentar para pessoas surdas, um dos nossos atores era surdo. Então, contagem, espelho… foi tudo ficando para trás. Fui percebendo uma orientação pelo ouvido do corpo que é mais poderoso que o ouvido da orelha.
Digamos que essa nova gramática é a reinvenção do nosso corpo, de uma forma que ele possa ser corpo inteiro. E a beleza disso é que cada corpo é um corpo. E aí você entra em um processo mais rico de descoberta, menos competitivo e mais artístico.
BM: Como foi dirigir a peça e quais os maiores desafios de escrever para o público infantil?
Emílio: Essa peça me tirou completamente do meu campo de certezas. Foi complexo, mas saboroso. Conheci artistas incríveis e pude consolidar algumas parcerias que vinham de outros trabalhos. É um time muito especial para mim. Eu ri, chorei, descabelei, duvidei, enlouqueci. Foi como tinha que ser. Sobre o público infantil, o maior desafio é convencer os adultos que as crianças são seres pensantes. E como pensam! E pensam se emocionando. Muita gente acha que é um teatro mais fácil ou que você pode economizar nos recursos estéticos porque a compreensão da criança é limitada. Então, o desafio é sempre mostrar que é possível sim fazer teatro infantil no mesmo padrão e rigor do teatro dito adulto.
BM: Qual a mensagem principal da peça? E se você fosse descrevê-la em uma palavra, diria que é uma história sobre o que?
Emílio: Qual a mensagem principal da peça? Vou ficar pensando nisso um bom tempo. Esse é o exercício… o luxo do pensamento. Gosto mais das perguntas que das respostas. Gosto das lacunas. A imaginação preenche a dúvida. Espero que as pessoas assistam à peça e pensem nessa mensagem principal… pensar é bem bonito! Se eu fosse resumir a peça em uma palavra seria uma peça sobre GENTE. Gente que é capaz de se emocionar com e pelo teatro.
BM: O que você aprendeu nesse processo que passaria para outros diretores ou produtores no sentido de trabalhar mais com a inclusão, de adotar a audiodescrição, e contratar mais atrizes e atores que sejam PcDs?
Emílio: Inclusão não é um favor. Repensem os famigerados perfis. E não tenham medo de mudar as estruturas que movem o mundo. É possível! Todo mundo merece conviver no teatro.
O ‘Musical da Passarinha’ segue em temporada híbrida no Teatro Sérgio Cardoso até o dia 10 de abril, e as sessões acontecem sempre aos sábados e domingos, às 15h.
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