COMO ESCREVI O MUSICAL ‘VINGANÇA’, por ANNA TOLEDO
“Vingança” é meu primeiro texto teatral, escrito entre 2010 e 2011. É um melodrama musical com uma trama cheia de reviravoltas envolvendo casais/trisais/quadrisais/etc. ambientada nos anos 50, nos cabarés do sul do Brasil, embalada pela música romântica do Lupicínio Rodrigues.
Como surgiu o Vingança? Por que eu resolvi escrever um musical?
Isso vai soar dramático, mas na época me parecia a única opção possível.
Lá por 2010, mais ou menos, eu assumi que estava insatisfeita com o rumo da minha carreira no teatro. Eu estava em São Paulo havia quase dez anos, sempre trabalhando como atriz em grandes musicais, mas em funções de swing, ou de cover – ou seja, a atriz substituta. Foi uma escola incrível, que me deu prontidão e objetividade, e onde eu conheci pessoas que se tornaram meus parceiros artísticos e amigos pra vida. Mas a fantasia de que um dia eu seria agraciada com um papel começava a se desvanecer. Eu me percebia “catalogada” numa certa função dentro da hierarquia dos elencos e começava a temer que aquilo fosse o mais longe que conseguiria ir.
Num determinado momento desta crise profissional, entendi que, se eu quisesse ir além, eu mesma teria que me dar a chance que tanto sonhava: ou eu encontrava e produzia um musical com um bom papel para mim (mas eu não tinha dinheiro pra comprar os direitos de nenhum musical), ou eu mesma criaria um. Quando essa chave virou, não é que as coisas ficaram mais fáceis, mas ao menos eu parei de patinar na minha própria frustração e comecei a me movimentar numa direção nítida.
“Vingança” surgiu desta necessidade de me dar uma chance como atriz, junto com outra ideia que pairava no meu horizonte: na época eu fazia alguns shows com voz e piano, em teatros pequenos e em bares com o Guilherme Terra. Desde 2008 nós apresentávamos um show de música brasileira chamado “Coração na Mão”, onde a gente cantava Lupicínio Rodrigues e outros compositores (Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, etc.). Esse material – especialmente as canções do Lupicínio – parecia clamar por um show roteirizado: dividido em cenas, com danças, números musicais com mais atores/cantores, enfim, um musical.
Comecei a desenvolver o projeto-protótipo deste show, junto com o Gui Terra na direção musical, sob o título provisório de “Dramalhão”. Chamamos os amigos André Dias pra dirigir, a Kátia Barros pra coreografar e começamos a desenvolver o conceito do que viria a ser o espetáculo. Tudo isso, é bom que se diga, absolutamente na base do idealismo e vontade de fazer alguma coisa legal juntos. Na época a gente rachou um estúdio e gravamos uma demo com algumas canções de Lupicínio Rodrigues, pra Katia coreografar. Filmamos alguns números. Montamos um book lindão com referências estéticas, coreográficas, de cenografia e figurino, de fotos de época. O setlist inicial tinha mais de 40 músicas. Seria uma espécie de revista da dor-de-cotovelo, entremeada de textos que eu escreveria, a partir da pesquisa de época.
Inscrevemos nosso projeto lindão num festival de teatro e cruzamos os dedos.
O tal festival não rolou e nós ficamos com um projeto lindão na gaveta.
Depois dessa primeira decepção, veio o segundo momento-chave. O André Dias virou pra mim e disse: “Você podia desenvolver esse texto numa história só, com todos os personagens se relacionando”. Tipo uma peça de teatro mesmo? Isso.
Por que não? Eu não estava fazendo mais nada, mesmo.
A partir desta provocação eu desenvolvi a sinopse do Vingança. Criei uma trama com três triângulos amorosos interligados, onde cada personagem está ligado a todos os outros. Como se todos estivessem conectados por um só fio. A ação tem início quando um boêmio casado e infiel escolhe se envolver com uma mulher “fatal”, por assim dizer. E aí todas as relações entram em conflito.
O processo de escrita levou dez meses. Não havia pressa porque não havia um prazo. E eu precisava aprender como fazer. Eu tinha alguns diálogos anotados, algumas cenas imaginadas, situações que já estavam apontadas pela música, e eu sabia como a história começava e terminava: a “chave” seria a música “Maria Rosa” e a história daquela personagem. Pedi ajuda para um amigo roteirista e ele me disse que eu precisava de uma escaleta. Eu não sabia o que era isso. Aprendi. A escaleta foi fundamental para definir quais cenas entravam e quais seriam cortadas, a partir da função de cada cena. Mais difícil foi escolher as músicas. Tive que cortar músicas incríveis que tinham a mesma função dramática de outras que já estavam na peça.
Escrevi com algumas pessoas em mente. Por exemplo, eu já sabia que o Jonathas Joba seria o Liduíno – o tal personagem boêmio infiel – e que eu seria a Luzita – a esposa traída. Tomei cuidado para que todos personagens tivessem o mesmo peso e no mínimo um número musical de responsabilidade. Queria que os atores se sentissem igualmente motivados e desafiados pelos personagens. Mas me dei de presente a música-tema, Vingança, pra cantar 😉
Finalmente, em meados de 2011, com o texto pronto, tive a ousadia de levar o projeto para as produtoras Celia Forte e Selma Morente, da renomada produtora Morente Forte. Entrei em contato pelo Twitter e a Célia me respondeu! Para minha surpresa, elas não só se encantaram com o projeto como imediatamente marcaram uma leitura pública no Auditório do MASP para atrair patrocinadores. A recepção do público foi incrível. O patrocínio veio dois anos depois.
Quando nós montamos o Vingança pela primeira vez, em 2013, eu me deparei com uma verdade difícil, mas maravilhosa: o autor só cria o texto, são os atores e o diretor que tiram ele do papel. Então o que eu imaginava na minha cabeça foi substituído pelo que os atores faziam com o texto. E era mais interessante porque eram interpretações a partir de bagagens diferentes, de corpos e vozes diferentes, de pessoas diferentes de mim. Foi um aprendizado fascinante. Coisas que surgiram na sala de ensaio foram incorporadas ao texto final. O grito “Me chama de Rosa!”, da Luzita, surgiu num ensaio. Lembro da cara do André, de olhos arregalados. “Você tem certeza?”, ele sussurrou, e eu respondi “Deixa eu tentar mais um pouco”. A fala ficou e é um dos pontos baixos/altos da pobre personagem.
Eu intuía que a peça faria sentido pra mais gente. Mas não escrevi pensando num público-alvo, nem sob encomenda de algum produtor. Era o que estava no meu campo de imaginação, naquele momento, com os amigos com quem eu queria trabalhar. Minhas experiências posteriores confirmaram que quanto mais pessoal e independente for o seu trabalho criativo, mais interessante ele será. E isso não significa, de modo algum, fazer tudo sozinho, mas confiar nas próprias ideias, confiar na intuição e confiar que as boas – e indispensáveis – parcerias virão por afinidade criativa.
Finalmente, eu sei que ninguém pediu, mas se você leu tudo até aqui, talvez também esteja interessado em colocar suas próprias histórias no palco e aprecie uma palavra de incentivo. Se for este o caso: confie em seu trabalho, confie nas suas ideias e confie no Tempo. Boa sorte!
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