O Oscar passou e, mais uma vez, entre (muitas) polêmicas, bloqueios em massa no twitter, pessoas felizes, pessoas descontentes, justiças, injustiças e Anas Furtados, uma coisa permanece forte nos discursos dos vencedores: o acreditar nos sonhos.
É, eu sei. É chato. Quando você coloca isso vindo deu uma indústria multibilionária que funciona num país hiper capitalista que adora endeusar o discurso meritocrático a la Em busca da Felicidade, a vontade que dá é de revirar os olhos. Com força. Porque quando você olha ao redor e tá tudo tão caótico, quando você atravessa a rua e a realidade vai batendo duro na sua cara, quando a conta não fecha e o litro do leite custa cinco reais, você se pergunta: o que caralh@s estou fazendo com a minha vida? Sonhos não cabem aqui. Deveria pegar os privilégios que me cercam e fazer algo de útil com isso. E aí entra o problema do que é ser útil, do que é visto como utilidade num mundo que vive sob a ótica do produzir. Apenas o trabalho que é visto no final, que se torna algo concreto, é visto como sendo útil. E é engraçado porque as pessoas que entram de terno com as suas maletas vazias em empresas milionárias dificilmente entram nessa porque, hey, é trabalho. Mas tenta acenar com um pincel e um quadro branco pra você ver… É de preguiçoso pra baixo. Pesquisador? Vagabundo. Artista? Inútil. Cultura? Dispensável. Ator de teatro musical? Tente da próxima vez.
E você com certeza já deve ter ouvido que trabalho não tem que ser divertido porque é trabalho, certo? Imagino que várias vezes, e entendemos de onde isso vem. Nossos pais vieram de uma geração que se casava aos 27 e até os 30 já tinham casa própria, carro e bebês – alguns de vocês, inclusive, lendo esse texto. E daí essa geração que agora se aproxima dos 30, 30 e poucos, achou que não só teria tudo isso, mas teria tudo isso com o plus: trabalho dos sonhos + viagens para Europa. Adivinha: não foi bem assim. Saímos do: não precisamos ter uma casa e um carro para o “pelo amor de DEUS, preciso de um plano de saúde e um vale alimentação”.
Então, sim, entendo de onde vem essa exaustão do acredite nos seus sonhos. Mas tem aquela parte de mim, otimista até os ossos, que… acredita. E é por isso que La la land, críticas e polêmicas a parte, me pegou tanto. E é por isso que, no texto de hoje, decidi falar sobre ele and fuck the rules.
Quando assisti La la land pela primeira vez – e graças a Deus e ao torre**, não foi no cinema e sim no sofá da minha casa (depois assisti cinco vezes no cinema pra compensar, ok?) – chorei de soluçar. Mesmo. Solucei pateticamente e baixinho na sala pra não acordar a minha mãe. Depois fui deitar e aproveitei o tempo fresco do interior pra me esconder debaixo de três cobertores e chorar mais um pouco até a cabeça doer. Simplesmente não conseguia parar. Nunca tinha reagido tão profundamente a um filme – e estamos falando de alguém que cresceu assistindo o Macaulay Culkin morrer com picadas de abelha na sessão da tarde enquanto vivia o seu primeiro amor, então… eu poderia aguentar qualquer coisa. Mas não, fui derrubada por um musical sobre… bem, sobre o que?
Qual é a tema central de La la land? É um filme sobre o que? Sonho? Realidade? Talento? Sobre o próprio cinema dentro do cinema? Sobre projetar uma fantasia? Sobre pessoas brancas protagonizando a cena do jazz? (infelizmente também).
Para mim é sobre sonhar, sim, e sobre desejar tanto uma coisa que outros veem como ilusão, como pouco realizável, inconstante e maluco, e correr atrás disso. Mas é mais que tudo sobre coragem.
Coragem de ousar sonhar quando toda a sua realidade grita o contrário, quando as carreiras artísticas gritam privilégios e nepo babys, quando a comida falta e a conta vence, e mesmo assim você se arrisca e – idiotamente ou não, ainda não sei dizer – tenta mais uma vez.
Claro que Hollywood é uma máquina de sonhos. A base pela qual essa indústria multimilionária que encontra agora, nos streamings, um novo desafio, é estimular a realidade das pessoas comuns naquilo que elas adoram ver na tela e sonham, mesmo que nos recantos mais escondidos da mente, em viver. E é claro que, sendo assim, La la land é um prato cheio. O filme não só é um romance musical que homenageia a época dourada de Los Angeles e do cinema, mas é também sobre querer uma coisa e iniciar uma verdadeira jornada de herói para conquistá-la. E tudo isso sob a direção estimulante do Damien Chazelle que, digam o que quiserem, tem todo um frescor clássico no seu trabalho que é bastante característico e atrai até os mais céticos.
Enquanto Mia e Sebastian vivem a experiência de um amor de cinema vibrante e colorido, dançante, em que encontram um no outro o entendimento das suas buscas e sonhos, projetos, eles também estão numa jornada própria daquilo que querem realizar profissionalmente, só que numa indústria extremamente competitiva e numa cidade em que todo mundo está basicamente buscando a mesma coisa: um lugar ao sol, a sua própria versão de Sunset Boulevart.
Ironicamente, no entanto, apesar do filme falar sobre sonhos, ter uma paleta de cores quentes e reconfortantes como a melhor tarde de sol no clube da cidade, ainda é uma história sobre a realidade. Não à toa, a cena inicial de La la land é justamente o que? Um engarrafamento. Se falando de Los Angeles, conhecida pelos longos e intensos engarrafamentos, não há lembrete mais cruel da realidade e do dia a dia. No entanto, o que era para ser exaustivo e estressante, estático, vira um grande número musical em que as pessoas saem de seus carros para cantarem e dançarem porque, afinal de contas, it’s Another day of sun e todas as possibilidades estão na mesa. Tudo pode acontecer, e é excitante.
E, de fato, acontece: Mia praticamente escuta um chamado, que é piano de Sebastian tocando, e ao invés do primeiro encontro perfeito eles têm um embate bastante anticlimático em que Sebastian, de um jeito bem Ryan Gosling, está cem por cento nem aí pro que a Mia tem a dizer; e a Mia, por sua vez, está tendo mais um dia de merda, com mais um teste fracassado. E, não obstante à sua vida profissional ir de mal a pior e o tempo que ela coloca para si mesma estar esgotando, sua vida pessoal também está meio que indo pelo ralo – por que afinal de contas, uma coisa ruim puxa a outra (tenho certeza que tem um ditado sobre isso, mas não consigo lembrar).
Só que então, ela está se apaixonando na primavera, e logo ali na esquina será verão, e não tem nada melhor do que se sentir apaixonado. Acho que se apaixonar é ter um pouquinho da magia dentro de nós porquê de repente você sente que pode tudo. Você quer constantemente ser uma versão melhor de si mesmo, e não para o outro. Você quer ser melhor para que possam crescer juntos. E então, você se vê dando dez voltas na praça da liberdade as sete da manhã todos os dias mesmo que odeie as manhãs mais que tudo, porque… porra, você pode. Tem tanta energia no seu corpo que algo tem que ser feito para extravasá-la. O amor realmente não é desse mundo.
Mas, é a vida. E La la land é sobre ela, então a mesma força que Mia e Sebastian dão para o outro, o mesmo entendimento gratuito e ingênuo que eles têm sobre como querem viver e o que querem fazer, também passa a dar lugar a necessidade de querer dar o melhor para o outro. A realidade começa a se instalar porque, de repente, Sebastian vê que o seu apartamento é menos que o ideal e aquela infiltração no teto não pode mais ser ignorada. Não é mais ele por ele; tem alguém na sua vida, eles devem pensar juntos, olhar para o futuro. Então Sebastian cede. Quão irreal é querer ter um bar de jazz quando ele está totalmente ferrado? Especialmente quando tem uma banda perfeitamente aceitável que vai pagar salários e benefícios e vale-alimentação e BHbus e plano de saúde (porra, o plano de saúde!)? Seria louco negar, certo?
É aquele momento nos filmes que tudo parece ir bem, mas hey… ainda estamos na metade, então provavelmente vai dar muita merda. A Mia finalmente encontra a força que ela está precisando para enfrentar mais uma rodada de audições, mas desta vez, de forma diferente. Da mesma maneira que ela dá dicas ao Sebastian sobre como pode ser o seu clube de Jazz – dicas até mais realistas e pés no chão do que o Sebastian se permite, ele, por sua vez, encoraja Mia a criar as suas próprias histórias, fazer o seu próprio roteiro e apresentá-lo num teatro. Desnecessário dizer que, aqui, ela está pagando para trabalhar – um conceito que todo artista conhece e se torna, infelizmente, familiarizado em algum ponto da carreira. Mia justamente tenta explicar para a sua mãe, pelo telefone, que não, ela não vai receber nada por aquilo, mas mesmo assim é uma peça importante. Realmente sinto pena dos pais de artistas (desculpa, mamis), mas por mais instável que o futuro pareça a gente simplesmente não consegue evitar.
E é claro que, ao contrário do que a Mia idealiza, há meio dúzia de gatos pingados no teatro, muito desencorajamento por parte dos funcionários, e um Sebastian que não aparece. Há alguém ali que vai ser importante, mas ela não consegue ver além da nuvem de decepção consigo mesma, com o seu parceiro, com a vida e, provavelmente, com o seu sonho que acaba de escorrer junto com os últimos grãos da areia da ampulheta. Ela não tem mais tempo e não consegue fazer isso de novo. É tempo de crescer, diriam as pessoas. Pessoas que nem importam, mas que em momentos como estes a gente acaba dando ouvidos porque, afinal de contas, quais as chances desse sonho insano se realizar? Mia diz que deveria ter terminado a faculdade de Direito, e talvez eu também (mas, ao contrário disso, ainda estou aqui, escrevendo).
E é claro que aqui temos aquele clímax bem clichê do tipo: oh, não, deu tudo errado. Minha carreira não vai pra lugar nenhum e ainda perdi o amor da minha vida. Mas, poxa, é um musical. As coisas têm que dar certo no final, certo? (Bem, deixa eu falar uma coisa ou duas sobre teatro musical: 1) não, quase sempre as coisas dão errado, 2) não é porque tem canto e dança que você não vai sair destroçado.) Mas por mais clichê que seja, as vezes funciona. Pode ser feijão com arroz, mas a verdade é que amo arroz fresquinho, então tudo bem. E, sério, o diálogo da briga depois da peça sempre me pega. “Maybe i’m not good enough”. Ai.
O final tá se aproximando e nada deu certo ainda, e você começa a ficar realmente com medo que não dê.Vamo galera roteirista! Porra, preciso que dê certo, ok? Preciso que a Mia conquiste os seus sonhos e ainda tenha o amor da sua vida ao lado. Tenho que ter alguma garantia de que talvez, só talvez, não seja só para os loucos. Preciso da porra de um final feliz!
Ok, me acalmei aqui. Ufa. Esse filme mexe comigo.
Então Mia voltou para a casa dos pais – ah, a sensação de fracasso, que delícia. Yup! O sonho de todos nós na adolescência: ferrar com tudo aos trinta e dar de cara na parede. Meu pesadelo absoluto. Enfim, aquela sensação de querer se rastejar pra cama e não sair nunca mais – sei bem, Mia. Mas então, aquela peça fracassada, lembra? O monólogo. A simbologia do: sou eu mesma que tenho que fazer isso, sozinha. Ninguém vai fazer por mim, porque só cabe a mim. aquele momento jornada do herói – agradeço ou mando os gregos se ferrarem?
De toute manière, Mia acerta. Tinha alguém olhando na plateia naquele dia além dos amigos. Porque, sei lá, a vida também é um pouquinho de sorte, com carma, destino, deuses (essa perspectiva já não me agrada tanto porque não pareço ser alguém por quem qualquer deus grego deteria interesse, então me ferraria cem por cento), e tudo misturado. E, porra, acredito muito no querer. Chega um ponto, no viver das artes, que quem não tem alma de artista mesmo vai desistir – polêmico, eu sei, me xinguem no twitter. Mas viver de arte nem é uma escolha, só te pega. E você bate a cabeça torcendo que a parede rache ao invés do seu crânio. Então uma hora pega.
Ai, graças a Deus! Vai dar tudo certo, mas antes… mais uma rodada de choro com Audition aqui, por conta da casa! Não consigo dizer muito sobre essa cena sem ter uma crise, então vou só deixar aqui. Por sua conta e risco.
Tudo lindo, a Mia vai ganhar o papel e o Sebastian vai montar o clube de jazz com a porra do banco, e eles serão felizes para sempre. Certo?
Não, porque é a vida, lembra? Não é a porra de uma comédia romântica e eu fui, o que? Enganada? Mia entra na casa dos sonhos, aquela que ela no fundo sabia que compraria um dia se seguisse o seu caminho, e claro, tem uma criança adorável esperando ela chegar em casa, e o marido que com certeza é o Sebasti- pera, quem é esse cara? Não, não é o Sebastian. O que caralhos aconteceu? Tenho que parar de assistir a série sobre piratas, estou escrevendo muito palavrão. Foda-se. Damien, o que você está pensando?
Ainda estou tentando me situar na narrativa do filme quando a Mia e o marido desconhecido saem para jantar e, ah, ótimo! Outro engarrafamento. Mas dessa vez não é solar ou musical, é só… um engarrafamento mesmo. Eles desviam e decidem adiar uma estreia para jantarem. E é claro que, sim, Sebastian também conseguiu. Mia está estrando no túnel das memórias de um amor que vai viver para sempre, e no final das escadas, bem ali, está a prova de que o Sebastian esteve sempre ouvindo: a logomarca que ela havia desenhado. Ele só era um idiota teimoso, mas estava ouvindo o tempo todo. Eles se escutavam, mesmo quando o mundo ao redor continuava gritando.
E é quando o filme começa dentro do filme, e acho que é aquele do tipo mais doloroso: o famoso ‘o que poderia ter sido’. A pergunta de bilhões. O grande dilema de ser adulto é entender que tomar uma decisão é deixar todas as outras de lado, e assumir isso mesmo quando der errado. A verdade é que nem sempre é o fim do mundo, você só se levanta. Mas quando tomamos certas decisões nem tudo vem no pacote, e isso dói. No sorriso que a Mia e o Sebastian dão um para o outro depois que o filme dos se’s passa por eles está a confirmação do quanto eles se amaram, e isso basta. Claro que pra quem está assistindo é um soluço atrás do outro, porque a gente é guloso, a gente quer tudo.
Mas o que mais me dói no fim de La la land mesmo não é a não realização romântica do Sebastian e da Mia, mas a sensação de ver as luzes se apagando e saber que a magia que vivi naquelas duas horas e alguns minutos se acaba ali também – a menos, claro, que eu faça a minha própria versão de Audition e tenha a coragem de bancar minhas decisões mesmo quando elas parecem ir no caminho contrário do mundo inteiro.
Então, FINALMENTE, começo a escrever.
Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltaçãoPoema de Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e Outros Poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Deixe um Comentário