Desde o anúncio dos indicados ao Tony Awards em outubro, muita coisa aconteceu na Broadway. Produções fecharam, atores perderam empregos, mas, o mais importante, foi um despertar efetivo para a forma como a indústria teatral americana vinha se comportando desde muito tempo.
A Broadway é um espaço que vive uma vida dupla peculiar: ao mesmo tempo que coloca em seus teatros histórias que dão luz a diferentes pessoas e comunidades, sejas nos roteiros contados ou nos atores no palco, os seus bastidores, e suas posições de poder, continuam majoritariamente homogêneas: são brancas e masculinas.
Tal seleto grupo de produtores que costumam tomar decisões vem recebendo críticas do fãs já faz um tempo. Entre janeiro e março de 2020, por exemplo, aconteceram protestos na porta do Broadway Theatre, casa do novo revival de West Side Story, contra o ator Amar Ramasar.
Mesmo sendo o protagonista de um escândalo no New York City Ballet, devido ao envio de fotos sexualmente explícitas, Amar conseguiu o papel de Bernardo no musical e, também, conquistou a afeição de seus superiores. Na época, os produtores do musical lançaram uma nota em que afirmavam não ter nenhuma chance do ator ser afastado do espetáculo.
O tempo passa, uma pandemia nos assola, mas as atitudes se mantém. Em abril de 2021, o The Hollywood Reporter publicou uma matéria em que expunha a forma abusiva que o produtor Scott Rudin tratava seus funcionários. A reportagem trazia pessoas que haviam trabalhado para Rudin contando das agressões ora físicas, como a vez que ele esmagou um monitor na mão de seu assistente, ora emocionais que sofriam por trabalhar naquele ambiente.
Para além do cinema, em que Rudin possui vasta notoriedade com 151 indicações ao Oscar por filmes que realizou, ele também era influente no teatro. Em sua lista de produções temos títulos como o revival em 1996 de A Funny Thing Happened on the Way to the Forum, The Book of Mormon, a versão de Hello, Dolly! em 2017, o novo The Music Man com Hugh Jackman e Sutton Foster (esperado para abrir este ano) e, não-ironicamente, a versão de West Side Story de 2020 – a mesma com as polêmicas de Ramasar.
Após a publicação, a Broadway ficou calada. Grandes sites especializados na indústria não reportaram a notícia imediatamente e atores renomados, que já haviam trabalhado com Rudin, também decidiram não dar comentários. E isso, para quem é apaixonado por teatro e não aguentavam mais a omissão da Broadway, foi a gota d’água.
Uma semana depois da notícia, e de todo silêncio que a seguiu, Karen Olivo decidiu que não podia ficar de boca fechada ou se manter no mesmo caminho. Foi assim que elu decidiu sair de Moulin Rouge: The Musical, show que lhe rendeu uma indicação de Melhor Atriz em Musical no Tony Awards deste ano.
“Eu poderia facilmente voltar e fazer muito dinheiro, mas eu não seria capaz de controlar o que eu estaria colocando no mundo e o que vejo, agora, na nossa indústria, é que todo mundo está com medo e ninguém está realmente fazendo o que precisa ser feito“, disse em um vídeo de cinco minutos em seu Instagram, em que anunciava sua saída.
Ainda que nunca tenha trabalho com Rudin, o caso abalou Olivo, que considerou todo o silêncio “inaceitável”, e a deixou com o sentimento que a Broadway não era o lugar em que queria estar – e que também não planeja voltar tão cedo:
“Justiça social é mais importante do que ser o diamante brilhante. Construir uma indústria melhor para os meus estudantes é mais importante para mim do que colocar dinheiro no meu bolso”
Seguindo a onda de indignação, no final de abril aconteceu a #MarchOnBroadway, protesto em que membros da indústria teatral e fãs protestaram contra Scott Rudin e exigiam que o meio começasse a ser verdadeiramente inclusivo para diferentes comunidades como a negra, indígena, com deficiência, imigrante e LGBTQI+.
Centenas de pessoas se reuniram e caminharam pela Times Square, passando pelos principais teatros da Broadway, entoando gritos que pediam a saída de Rudin de suas produções e com depoimentos de artistas que haviam sofrido algum tipo de preconceito nos bastidores das grandes produções.
“The experiences I had at @dearevanhansen were blatant racism.” Former understudy @ThisIs_Essence tells of backstage abuses at the show, like being told she “wasn’t fooling anyone into thinking she could be WASPish” as Zoe — the role she was hired to play. #broadwayfightsback pic.twitter.com/Dr9alWwX9A
— Laura Heywood BroadwayGirlNYC (@BroadwayGirlNYC) April 22, 2021
Tradução: “As experiências que eu tive em Dear Evan Hansen foram de puramente racismo”, disse Diamond Essence White, que foi understudy de Zoe/Alana no musical, sobre os abusos que sofreu, incluindo terem dito que ela “não estava enganando ninguém a pensar que ela poderia ser WASPish*” como Zoe – o papel que ela foi contratada para fazer.
"Nós temos o talento. Nós temos a habilidade. A gente precisa do apoio. A gente precisa da acomodação!"
— Broadway Meme 💃 (@BwayMeme) April 22, 2021
Ryan J. Haddad (The Politician) tb compartilhou que, mesmo sendo fã da Broadway por anos, viu apenas 6 shows com representatividade de pessoas com deficiência #MarchOnBroadway pic.twitter.com/a9kkd9LEWr
Com a volta dos teatros marcada para setembro, esperava-se ver alguma iniciativa dos sindicatos dos atores, a Actors Equity, para exigir melhorias e mudança no local de trabalho, mas, até agora, nada foi oficializado. Porém, isso não impede que iniciativas partam da própria companhia de cada musical, como aconteceu em Hadestown.
Membros da orquestra do último vencedor do Tony Awards se reuniram em uma iniciativa que buscar diversidade racial e de gênero na contratação de musicistas, musicistas substitutos, coordenadores musicais e outros cargos na indústria.
De acordo com declaração postada no Instagram, eles se comprometem a, inicialmente, nomear, no mínimo, duas pessoas não-brancas entre seus substitutos, ao menos uma delas sendo negra (de ascendência africana-americana). Também, se comprometem a escolher, minimamente, duas pessoas que se identifiquem como mulheres.
“Nós esperamos que outras orquestras da Broadway façam o mesmo e nós esperamos que coordenadores musicais contratem 50% de negros, indígenas e outras pessoas não-brancas. Contratar apenas uma pessoa negra, uma pessoa não-branca, ou só uma mulher é os usar como token.”
Em meio a tantas controvérsias e tentativas (ou não) de mudança, teremos um Tony Awards em setembro celebrando a indústria teatral e sua resiliência durante a pandemia. Ainda que muitos acreditem não ter o que comemorar, a premiação segue. Quanto a Karen Olivo, indicada por um papel que já não é mais seu, os fãs podem saber que a corajosa decisão delu não afetou a votação perante a Broadway League.
Como a votação fechou em março, antes do caso Rudin estourar, Olivo ainda tem seus 33,33% de chance em levar a estatueta para casa – dividindo as chances com Elizabeth Stanley e Adrienne Warren. Mas a questão que fica é: elu vai comparecer à cerimônia? E caso ganhe, vai aceitar o prêmio? Esta resposta teremos apenas mais para frente, porém, se me cabe apostar, creio que Olivo não deve comparecer à cerimônia.
E este protesto é bem mais valioso que um Tony.
*WASPish é a sigla em inglês para brancos, anglo-saxões e protestante (White, Anglo-Saxons and Protestants), forma como os brancos nos Estados Unidos são normalmente referenciados.
Texto incrível! Essa frase ficou sensacional: “A Broadway é um espaço que vive uma vida dupla peculiar: ao mesmo tempo que coloca em seus teatros histórias que dão luz a diferentes pessoas e comunidades, sejas nos roteiros contados ou nos atores no palco, os seus bastidores, e suas posições de poder, continuam majoritariamente homogêneas: são brancas e masculinas.”