Por Manuella Garcêz
“Você sabe quantos Jonathan Larsons existem? Um.”
Gênios, assim como estrelas cadente, são raros e costumam passar rápido pelo mundo – mas não sem antes brilhar forte no céu escuro, atraindo os olhares admirados daqueles que tem a sorte em vê-los ao vivo e, volta e meia, recebendo um pedido ou outro. Que eu consiga um emprego. Que eu ganhe na loteria. Que eu seja como você quando crescer. Que você nunca pare de criar.
Para mim, Jonathan Larson foi um gênio. E em sua passada meteórica pela Terra, tivemos a sorte em recebê-lo com toda sua alma criativa, sempre pulsando com ideias e necessidade de falar, de criar, de dar luz a arte. Muitos conhecem RENT, seu musical mais famoso e que lhe rendeu 3 Tony Awards. Alguns conhecem a triste história de seu falecimento no dia da primeira apresentação daquele que viria ser seu maior sucesso. Poucos sabem, ou pelo menos sabiam, do que veio antes. Os anos de tentativa e erro, os workshops falidos, as ideias que não foram para frente e as cartas de recomendação escritas por um ídolo, mas que não chegavam ao resultado almejado.
Antes de Jonathan Larson ser Jonathan Larson, ele era apenas o Jon. E esse Jon completou 30 anos em 1990. Nesse cenário, surge tick, tick…BOOM!. O show original se chamava 30/90, em referência aos números chaves naquele momento de sua vida, e depois se tornou Boho Days. O tick, tick…BOOM! como conhecemos hoje, e que foi base para a adaptação cinematográfica produzida pela Netflix e dirigida por Lin-Manuel Miranda, surgiu apenas em 1996, após a morte de Larson, em um esforço de David Auburn para reestruturar o monólogo musical em um espetáculo de três pessoas. Em 2001, essa versão revisada estreou no Off-Broadway e se espalhou pelo mundo.
Hoje, 20 anos depois, a Netflix resgata a produção e lhe dá todas as ferramentas necessárias para criar um filme grandioso. Temos um diretor que, ainda estando no seu debut nesta cadeira, tem um nome de peso na indústria teatral e em Hollywood. Temos um roteiro original bom, adaptado por um vencedor do Tony, que se adequa e fica fluido na tela. Temos um elenco talentoso, que consegue segurar os momentos da montanha russa emocional que Larson criou, e, principalmente, temos o próprio Jonathan Larson. Porque não é Andrew Garfield que está ali interpretando o papel do compositor americano, é Larson em pessoa.
tick, tick…BOOM! (2021) é definitivamente um divisor de águas para Garfield. O ator entrega uma das melhores performances do ano, arrisco dizer que é a melhor da carreira. Seu entendimento da história, personalidade, medos e felicidades de Jon é tão profundo que simplesmente acreditamos estar vendo o Jonathan Larson tal qual em um reality show, e não uma ficção. Ambientado na década de 1990, o filme conta a história de Jon, um jovem compositor teatral que trabalha como garçom em um restaurante de Nova York enquanto tenta criar um grande musical. Dias antes de apresentar o projeto, ele vive um momento de pura pressão e precisa lidar com a namorada Susan (Alexandra Shipp), que sonha com uma vida artística muito além de Nova York, o amigo Michael (Robin de Jesús), que abandonou os sonhos para buscar a estabilidade financeira, e a comunidade de artistas assolada pela epidemia de AIDS. Correndo contra o relógio, Jon enfrenta o grande dilema da vida: o que devemos fazer com o tempo que temos?
Com um temporada limitada em cinemas selecionados, a Netflix deixa bem claro sua aposta no longa para a temporada de premiações e Garfield chega com o pé na porta entre os concorrentes de Melhor Ator. Não vai ser surpresa nenhuma seu nome começar a aparecer como forte candidato ao prêmio no Oscar, precedido por possíveis nomeações nas premiações satélites. Uma cena em específico, quando Jon está sozinho com um piano em um anfiteatro vazio, é nítido e palpável toda carga emocional que o personagem acumulou nos últimos acontecimentos de sua vida, e isso nos é passado com a voz doce de Garfield em Why. Se eu pudesse dar uma dica, seria deixar os lencinhos prontos quando for assistir.
Ao seu lado, É preciso dar os parabéns a Robin de Jesús e a profundidade de seu Michael. Um dos maiores benefícios da adaptação foi os atores ficarem apenas com um personagem, diferente do musical de palco em que, tirando o protagonista, os outros dois artistas no palco se revezam em diferentes personagens da vida de Jon. Ao termos uma pessoa interpretando cada personagem que abrilhanta a história, conseguimos nos conectar melhor com eles e enxergar o trabalho criativo do ator na sua construção. Jesús, por exemplo, cria cautelosamente o seu Michael, levando o espectador a se conectar com ele em cada fala engraçada, cada momento de melhor amigo apoiador e, assim, consegue levar as lágrimas o mais durão dos espectadores com apenas uma fala, repetida incessantemente, depois da revelação que muda o rumo da história. Is this real life?, a gente fica se perguntando.
Do lado feminino, as principais personagens são Susan e Karessa (Vanessa Hudgens), mas ambas acabam sendo mal aproveitadas. Susan até tem mais tempo de tela e uma história para chamar de sua sendo desenvolvida paralela ao plot principal, afinal, seus questionamento em optar por uma segurança conservadora ou se manter na corda bamba nova iorquina, mas com o amor ao seu lado, ressoam na cabeça de qualquer jovem adulto confuso com o que o futuro lhe guarda. Sua presença na história, inclusive, é o que motiva muitas das ações de Jon, mas fiquei com um gostinho de querer ver mais de Alexandra Shipp e, especialmente, de ouvi-la cantar. Já Karessa se limita a seu papel de atriz dentro de Superbia, sem espaço para maior desenvolvimento a parte – ainda que seu Come To Your Senses emocione.
Para além das atuações primorosas, que elevam o nível do filme, as escolhas técnicas não ficam para trás. Lin-Manuel Miranda faz um bom trabalho como diretor, dando espaço para cenas do todo, usando elementos do teatro e se aproveitando das possibilidade que o cinema lhe oferece. Sua escolha para o trabalho foi certeira, porque não consigo imaginar em ninguém tão conectado a Larson e sua história que o fizesse jus como Miranda. A relação dos dois é antiga, porque foi após assistir RENT que Lin percebeu que poderia escrever musicais sobre o que ele vivia, que tinha espaço para outras histórias que não dos grandes clássicos na Broadway. E, além do mais, é visível como os dois são o mesmo lado de uma moeda, com sua reputação de escreverem sempre como se o tempo estivesse acabando.
Porém, o criador de Hamilton peca em decidir que tipo de filme queria fazer. Somos recebidos com uma cena de abertura que imita a gravação de uma fita cassete, mas os vídeos não são originais e sim estrelados por Garfield. Ao mesmo tempo, assistimos cenas de montagens reais de RENT e do dia-a-dia pessoal de Larson. No fundo, há uma narração de informações verídicas, enquanto a imagem troca e adentramos na parte ficcional e do musical em si. É como se tivesse um liquidificador e dentro colocassem documentários, biografias e ficção, servindo a mistura em uma taça bonita com granulado musical. Ainda que pareça confuso, porém, isso não interfere na experiência ou no entendimento que o público tem da história. O amor que Miranda coloca na tela, seja por se identificar com Larson ou pela paixão com a arte de criar, é passado ao espectador – e é isso que importa. No final, é tudo sobre o sentimento.
A maior parte do filme continua sendo a transformação do musical de 2001 em um sucesso do cinema, com cenas que ficarão marcadas no coração daqueles que amam o teatro musical. Estes, inclusive, recebem mimos a todo momento. É, de verdade, um longa feito por quem ama a Broadway, para quem ama a Broadway e sobre um cara que amava a Broadway. E, por isso, somos bombardeados com cameos de estrelas do teatro musical americano a todo momento, em especial em uma das cenas – cuja concepção original já era para homenagear um espetáculo clássico e de nome longo. O Lin continua sendo o maior distribuidor de empregos do teatro musical.
(Ah, fãs de RENT: temos referências ao musical, pookies)
Os números musicais, tão preciosos para nós aficionados pelo gênero, conseguem transitar entre o grandioso e intimista. Miranda não tem medo em trazer dezenas de bailarinos e filmar um número correográfico para logo em seguida nos apresentar uma música que se segura apenas nas memórias de Jon. Ou, então, fazer os cortes entre uma discussão acalorada e a canção apresentada em forma de show, algo parecido com o que Rob Marshall fez em Chicago (2002). E tudo isso funciona, por mais que numa descrição generalista pareça seguir caminhos diferentes demais. Os números se encaixam nesta mistura de formas justamente porque a mente de Larson também funcionava apresentando ideias tão diferentes, mas tão complementares.
De maneira geral, tick, tick…BOOM! se coloca no topo dos melhores filmes musicais do ano e o que mais se sobressai é a atuação de Andrew Garfield. O jovem entrega um trabalho primoroso, tornando até difícil de acreditar que ele não cantava antes, e não há adjetivos positivos o suficiente para descrever o que ele nos mostra. É uma experiência completa que cada um precisa ver por si só para entender e ser maravilhado.
Quando surgem os créditos, ainda que a tristeza nos abata pelo fim trágico e precoce de Larson, há uma felicidade em ver tudo que ele deixou como legado. É, realmente, como ver uma estrela cadente passar por nós e todo o tempo que temos com ela, por mais longo que seja, parece curto.
tick, tick…BOOM! está em cartaz em cinemas selecionados em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo e estreia mundialmente na Netflix em 19 de novembro.
Que texto maravilhosooo! Se eu queria assistir antes, agora quero o triplo!