Bertoleza é o nome da personagem do romance de Aluísio Azevedo, “O Cortiço”, de 1890. Uma mulher preta escravizada e explorada pelo protagonista da obra. Correção: explorada por outro personagem da obra – pois desta vez a protagonista é a mulher preta brasileira.
O musical, que nasce das ideias, pesquisa, adaptação e direção de Anderson Claudir, propõe uma revisitação ao romance com outro olhar, bem mais necessário, enquanto repete a pergunta profunda que sumariza toda a trama: E a Bertoleza? E a Bertoleza? E a Bertoleza?
A dramaturgia de Anderson Claudir e Letícia Conde constrói uma narrativa afiada, na qual enquanto acompanhamos a trajetória de Bertoleza no romance de Azevedo, somos convidados a refletir as representações, trajetórias e memórias de mulheres pretas brasileiras. Mulheres reais, que viveram, lutaram e escreveram a história desse país, seja através do ativismo, da política, da educação, da literatura, mas que são repetidamente esquecidas e apagadas: Dandara, Maria Firmina dos Reis, Tereza de Benguela, Antonieta de Barros, Laudelina de Campos, Carolina Maria de Jesus, Ruth de Souza, Marielle Franco e muitas outras.
Forma-se então uma espécie de musical-revista-ensaio, costura potente e ainda pouca explorada no musical brasileiro, que emociona enquanto ensina, proporcionaliza e repara.
O elenco de Bertoleza é sem dúvidas a alma do espetáculo. Lu Campos, Taciana Bastos, Cainã Naira, Larissa Noel, Palomaris, são as atrizes que potencializam a trama, com vozes incandescentes e interpretações belíssimas. Lu Campos encarna Bertoleza com visceralidade. Sua performance da canção tema “E a Bertoleza?” é ponto alto da trama, que sensibiliza todo o público com lágrimas e suspiros. O elenco masculino, que se reveza entre personagens da trama e músicos, é composto por Ali Barauna, Roma Oliveira, Edson Teles, Thiago Mota e Welton Santos. Todos, com muita química, dão suporte para que as mulheres tenham seu devido destaque.
O elenco de Bertoleza é formado em sua totalidade por artistas pretes.
As músicas originais foram escritas coletivamente por Anderson Claudir, Andréia Manczyk, Eric Jorge e Juliana Manczyk. Eric Jorge também assina a direção musical do espetáculo, que somada à Direção de Movimento e Coreografias de Emílio Rogê e à Direção Geral de Anderson Claudir reverberam num rico conceito criativo que mistura ritmos afro-brasileiros na música, no corpo e na cena, como o samba, o afoxé, o maxixe, o choro, o xirê, dentre outros.
“Bertoleza” é um forte exemplo da potência do teatro musical autoral em nosso país. Para além disso, é um forte exemplo do teatro brasileiro necessário, que revisita de forma crítica nossas estruturas, ao mesmo tempo que engrandece quem outrora foi esquecida. Espero que a Companhia Gargarejo tenha uma vida longa, que continuem com o lindo trabalho de pesquisa e desenvolvimento que já fazem, e que continuem proporcionando a experiência deste teatro-ensino brasileiro, para que em breve, quando nos perguntarmos novamente “E a Bertoleza?”, seja apenas uma feliz lembrança de uma mulher preta brasileira, e de um poderoso espetáculo musical.
BM
Texto: Guilherme Gila
Edição: Brígida Rodrigues
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