BM escreve: Into the Woods, Os Gigantes e as Crianças que Escutam

Danielle Ferdland, Ben Wright, Kim Crosby, Chip Zien e Bernadette Peters em Caminhos da Floresta . Martha Swope / Biblioteca Pública de Nova York

Eu desejo…

Lembro perfeitamente de quando assisti Into the Woods (Dentro do Bosque) pela primeira vez quando era criança. O filme mesmo, o tal do Caminhos da Floresta. Meus avós tinham visto no cinema e adorado.

Não vi nem 20 minutos. É sério. Parei na cena que o Johnny Depp dava em cima da Chapeuzinho. Cena essa que envelheceu como leite, inclusive, com toda essa situação do ator.

O rolê mesmo é que o filme não é lá muito bom. Mentira, ele é ruim mesmo. Então meio que passou batido, sabe?

Até que  cresci um pouquinho, comecei a entender melhor a língua inglesa e assisti a produção original. Percebi até que Into the Woods era… Engraçado?

Tipo, muito engraçado. Até o fim do primeiro ato. Depois do intervalo… Aí é só tragédia.

Obs.: Esse texto tem muitos spoilers. Se isso é um problema para você, tome vergonha na cara e vá assistir!

Nesse musical, composto por Stephen Sondheim e escrito por James Lapine, as histórias de João e o Pé de Feijão, Rapunzel, Cinderela e Chapeuzinho Vermelho acontecem no mesmo universo. Todas elas entrelaçadas com a de um casal de padeiros, que precisam de quatro itens para quebrar a maldição que os tornou infértil.

Maldição essa lançada por uma bruxa que, após ver que o pai do padeiro roubou seus feijões mágicos, rogou a praga na família e sequestrou sua filha mais nova, trancando-a numa torre. Sim, é a Rapunzel.

Ah, e um homem misterioso aparece às vezes pela floresta.

Com o passar do tempo, muitas coisas acontecem. Mas, basicamente, João mata o Gigante que mora nas nuvens e irrita sua esposa Giganta, que desce para matá-lo, causando terremotos e matando a mãe e a avó da Chapeuzinho. Cinderela casa com o príncipe mas se cansa da vida de luxo. O Padeiro consegue ter seu filho mas toda vez que ele o pega no colo, a criança chora. Já a sua Esposa acaba morrendo na floresta depois de ter um caso com o Príncipe. E o homem misterioso, na verdade, é o pai do Padeiro.

Enfim, um monte de gente morre. É uma catástrofe.

No fim, sobram os cinco: A Bruxa, João, Chapéu, Cinderela e o Padeiro com seu filho recém-nascido. Todos brigam tentando achar o real culpado dessa situação toda. A bruxa se emputece, joga os feijões no chão e some. Ela está certa, na verdade, como muitas vezes esteve.

Por muito tempo eu fiquei pensando no que isso tudo significa. Por que James Lapine decidiu que essa seria a história desses personagens?

É até engraçado que estamos tão acostumados com os finais felizes dos contos-de-fada, que as pessoas costumavam sair no fim do primeiro ato. Como se nenhuma ação daqueles personagens tivesse consequência. 

Mas têm. 

E aí que eu entendi. Into the Woods não é um conto-de-fadas, muito menos uma tragédia. É, simplesmente, um retrato da vida real. Irônico, né?

Sondheim, em seu livro “Look, I Made a Hat”, escreve:

“Ao inventar a história do “Padeiro e sua Esposa”, James contribuiu com seu próprio conto de fadas, o conto de fadas estadunidense. O Padeiro e sua Esposa podem até viver numa floresta medieval em um contexto de conto de fadas, mas são a essência do Casal Estadunidense Urbano e Contemporâneo que, por acaso, vivem com bruxas, príncipes e às vezes gigantes.” (SONDHEIM, Stephen. Look I Made a Hat, p. 58).

Inclusive, muitos fãs e teóricos costumavam encher o saco da dupla por acreditarem que os elementos da história fossem metáforas. Mas é importante reconhecer que, ao reduzir uma história ao seu simbolismo, o peso dramático das ações e reações dos personagens passa a ser regido por essa força maior simbólica. 

João não subiu o pé de feijão pela moral da história. João subiu porque quis. Mas por que ele subiu? Lapine conduziu seu texto se concentrando nos porquês dessas ações. A moral é consequência disso.

“Eles supõem, principalmente, que os Gigantes representam a AIDS, já que o show foi escrito e produzido nos anos 80, quando a AIDS estava em seu auge. Parando para pensar, é aparente que se os Gigantes fossem representar algo, não seria a AIDS. […] Para James e eu, é um gigante. E ponto final.” (SONDHEIM, Stephen. Look I Made a Hat, p. 102)

Naquela situação toda da Giganta, o padeiro se desespera e foge. No caminho, encontra o Homem Misterioso, seu pai. Que também fugiu.

É nesse confronto que os medos do Padeiro transbordam. E não, não é só a Giganta. É também a iminência constante de ser um pai igual ao seu. 

E aí que “No More” (“Já Deu”, na minha versão) começa.

“Vamos fugir. Vam’bora!

Vem, sem olhar pra trás.

Mas pra quem é pai, o quanto se vai

É o quanto se esvai a paz.

E é quando a ficha cai

Que um erro não se desfaz.”

(SONDHEIM, Stephen. NO MORE. Letra em português de MIGUEL MAGEVSKI.)

Agora, quer saber o mais louco de tudo? ESSA MÚSICA FOI CORTADA DO FILME! Não faz sentido nenhum.

O que mais me chama atenção é como essa canção termina. Dentre as várias coisas que o padeiro desejaria que deixassem de existir, ele escolhe essas duas:

“Chega de crianças.

Chega de gigantes.

Chega.”

(SONDHEIM, Stephen. NO MORE.)

Sondheim, em uma tacada de mestre, define dois fatores que se retroalimentam: os medos do padeiro e as razões para o seu retorno. A giganta é… um gigante, mas uma criança deveria estar longe de ser motivo de medo. Ele reconhece que o que pode impedir seu filho de ter um pai é o mesmo medo que fez com que seu pai o deixasse.

Para concluir essa jornada, o padeiro volta. Todos o recebem surpresos. Ele pega seu filho, que está chorando. 

Ao abrir a boca para reclamar que ele sempre chora no seu colo, a criança para de chorar.

 E então… Os quatro ali, reconhecendo a missão de matar alguém – por mais que esse alguém os cause mal – se deparam com uma questão moral, que encadeia a canção “No One Is Alone”.

“Bruxas podem estar certas.

Gigantes podem ser do bem.

Você decide o que é certo,

Você decide o que é do bem.”

(SONDHEIM, Stephen. NO ONE IS ALONE.)

Essa música é linda e, à primeira vista, parece uma canção de ninar. É fácil interpretá-la como um simples gesto de conforto dos adultos que a cantam, como um corriqueiro “estou aqui”. Mas não é só isso. Essa música lembra que todo mundo tem um lado, uma versão da história.

Essa canção é sobre duas crianças que têm medo sendo protegidas por outras duas crianças (que também têm medo, só que há mais tempo).

“Você decide sozinho,

Mas você não está sozinho.

(SONDHEIM, Stephen. NO ONE IS ALONE.)

Beleza, eles matam a giganta lá e fim da história? 

É meio que isso, mesmo. 

Os quatro decidem ficar juntos e ajudar o padeiro a criar seu filho. O musical termina com “Children Will Listen”.

“Cuidado com o que deseja

Desejos são crianças.

Cuidado com o rumo que tomam

Desejos se realizam,

Mas não sem um custo.

[…]

Cuidado com a história que você conta.

Ela é um feitiço

E crianças irão ouvir.”

(SONDHEIM, Stephen. CHILDREN WILL LISTEN.)

Lembro de ler, em algum lugar, uma crítica a essa canção dizendo que, ao escrever essa letra, Sondheim estaria sendo didático demais, algo que “fugiria de sua genialidade e sutileza”. E eu concordo que Sondheim tenha sido didático aqui. Mas existe um motivo para isso.

Todo conto de fadas tem uma razão social. “A Bela e a Fera” confortava as jovens que casavam forçadas. “Chapeuzinho Vermelho” mostrava os perigos de se confiar em estranhos. “Cinderela” era o exemplo perfeito da bondade que foi recompensada pelo destino.

O rolê é que a moral de Into the Woods não é para as crianças. É preciso que, ao final da história, isso seja esclarecido. É para os adultos que levaram seus filhos ao teatro.

Todos desejavam algo no início. Todos. E seus desejos, querendo ou não, os levaram a ser quem eles são no fim da história. 

Existe um certo determinismo no mundo onde vivemos. Nascemos destinados a “escolher” em uma lista pequena as possibilidades para nosso futuro. Tudo está escrito, não é isso que as religiões dizem? No final das contas, atribuir as consequências dos nossos desejos a nós mesmos é permitir que sejamos humanos. É nos distanciar da força maior simbólica que nos transformaria em meras metáforas.

Mas também, não devemos ter medo de desejar. É nesse impulso gerado pela ausência que evoluímos. 

A vida não é um conto de fadas. Que bom. E ainda sim,

Eu desejo.

BM

Autor: Miguel Magevski
Revisão e Edição: Brígida Rodrigues

Miguel Magevski

Miguel Magevski é um estudante de arquitetura metido a compositor, versionista e aspirante a produtor cultural. Mora em Vitória, no Espírito Santo e é apaixonado por musicais desde pequeno. Seu hobby favorito é ter opiniões fortes sobre assuntos aleatórios e guardar o máximo de curiosidades inúteis possíveis. Afinal, é pra isso que serve a vida, não é?

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