São poucas as vezes em que podemos dizer que um filme musical realmente furou a bolha da comunidade teatral e alcançou o grande público. Já são quase dez anos desde que vimos o impacto de La La Land e O Rei do Show. Há quatro anos, Querido Evan Hansen entrou em pauta, mas por todos os motivos errados. Há alguns meses, Wicked decolou.
Mas, nesse meio-tempo, há um musical que se destacou, sendo estrela de diversos eventos e festivais de cinema. E, por suas polêmicas, também foi estrela de várias manchetes e postagens na internet. Sim, vou comentar sobre o infame filme Emilia Pérez, que chacoalhou o mundo da arte audiovisual e conseguiu a conquista de não agradar nenhum dos públicos que desejava alcançar.

De primeira, o filme foi colocado em um pedestal por sua sensibilidade, empatia e solidariedade com o povo mexicano e com a comunidade trans. E disso tudo, ele não tem nada. Esse é seu ponto mais problemático, pois a obra parece não ter interesse em apresentar essas parcelas da população, que tanto precisam de representatividade, com uma boa ótica.
Para entender realmente o que houve de errado nesse musical, precisamos destrinchá-lo, e olhar de perto suas decisões artísticas questionáveis.
Começando pela tentativa de representar o povo mexicano e suas mazelas. E eu digo tentativa de forma bastante generosa, pois ela não é nem um pouco eficaz ou esforçada em sua representação. O motivo é visível, e já muito discutido: a ausência de pessoas mexicanas envolvidas na produção e no protagonismo do filme.
Nenhuma das atrizes principais é mexicana. Todas as gravações aconteceram em estúdios de Paris. Absolutamente nenhuma localidade do país é representada de forma genuína. O diretor, a produção, seus musicistas — a equipe criativa é toda francesa.
Quando uma obra é feita por um grupo completamente diferente daquele que está sendo representado no enredo, e o grupo que produz não mostra a boa-vontade de pesquisar ou entender o que está representando, é muito comum acabarmos com estereótipos e preconceitos descabidos. É o caso deste filme.
O México de Emilia Pérez é associado apenas a violência, pobreza, crime, injustiça e corrupção. Só faltou um filtro alaranjado sobre as cenas. Não satisfeitos com essa representação ofensiva, a história ainda coloca Emilia como heroína, e é impossível distanciar isso do fato que sua atriz é espanhola e não mexicana, repetindo o velho clichê do salvador branco.
A justificativa da produção para a escolha do seu elenco torna a situação ainda pior, expondo em entrevistas que a ausência de artistas mexicanos se deu por “não terem encontrado pessoas mexicanas talentosas o suficiente”. Isso é dito pelas mesmas pessoas que escolheram Selena Gomez como uma de suas protagonistas, que entrega uma performance desastrosa, desde sua atuação sem nenhuma sutileza até o seu espanhol artificial.

O desaforo com o México, infelizmente, transborda em outra questão. O tema principal do musical é a violência gerada pelos cartéis, e o destino de suas vítimas. É um tema interessante e que pede uma discussão sensível, realista. Mas aqui, vemos um retrato desprovido de sentimento e de intimidade. Apenas uma exposição gratuita, beirando ao sensacionalismo, sobre um tema real e próximo a muitas pessoas, lembrando os demais filmes hollywoodianos sobre o assunto.
É algo que não cabe mais na mídia contemporânea. Já passamos do estilo Sylvester Stallone de fazer histórias, temos entendimento suficiente para ter mais tato com outras culturas e suas particularidades.
Infelizmente, os mexicanos não foram a única população desfavorecida por Emilia Perez. A comunidade trans também recebeu uma contribuição inesperada, e nada positiva.

Como parte dessa comunidade, foi enfurecedor ver tantas aclamações. Apesar das pessoas por trás do filme apresentarem uma perspectiva progressista sobre questões de gêneros, a própria obra prova que esse assunto é ainda um tanto alienígena para elas. No mesmo ano, estrearam filmes que conversam e lidam muito melhor com essa experiência, como I Saw the TV Glow. Filmes mais sensíveis e mais contextuais, que fazem muito mais do que a jornada de Emilia, e que não ganharam tanto reconhecimento quanto o musical.
As canções sobre a transição e a experiência de Emilia são básicas e superficiais. Algumas, inclusive, cômicas demais para serem verdade — sim, estou falando de La Vaginoplastia. Na trama, a pauta trans é apenas um acessório desnecessário para a trama, digno de um filme do Adam Sandler. Além disso tudo, há as aberrações nas falas e postagens da atriz principal, Karla Sofía Gascon, que também não ajudaram em nada a situação já complicada do longa-metragem.

Enfim, podemos agora discutir o musical como uma obra por si só… E é desastroso.
A história é simplista e artificial, as músicas são exatamente o que se espera de uma pessoa que não fala o idioma escrevendo versos em espanhol (e claramente usando o Google Tradutor para fazer isso), e as coreografias não casam em nada com o tom das cenas.
A verdade é que Emilia Perez tinha tudo para ser uma comédia. Ela traz tanta artificialidade para os assuntos que o contraste entre o tema e o que vemos acontecendo em tela é cômico.
As atuações, tirando as falas estranhas da Selena em espanhol, não são de todo ruins. Afinal, são todas atrizes experientes em sua área… O que torna claro que a direção foi a questão principal. Estavam todos perdidos nesse processo. Ninguém parecia estar se comunicando direito sobre o que queriam como obra final. E, como resultado, lançaram esse Frankenstein de ideias.
Apesar de todos os pontos negativos sobre o filme, ele conseguiu vencer Wicked no Globo de Ouro, BAFTAs, e foi indicado a 13 prêmios Oscar, ganhando dois destes (Melhor Canção Original e Melhor Atriz Coadjuvante).
A motivação por trás é nobre. Grandes premiações oferecendo reparação histórica para artistas marginalizados, entre eles mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+ — mesmo que a contribuição seja apenas expositiva, não tendo investimentos reais em produções com estes protagonismos. Porém, escolher Emilia Pérez para ser a face dessa atitude trouxe um efeito oposto ao esperado. A obra não representa o povo mexicano com respeito, trata transição de gênero apenas como elemento de roteiro e não mostra o talento na comunidade do teatro musical, nem em sua composição e nem em suas performances.
Isso tudo deixa claro, mais uma vez, que as pessoas por trás dessas premiações são alienadas o suficiente para não compreender a questão central da reparação histórica que elas mesmas propõem, que é dar protagonismo aos artistas que foram apagados da história. Dar a eles a chance de contar suas realidades, exatamente para evitar que outras pessoas falem por eles.
Deixe um Comentário