Spider-Man: Turn Off the Dark (algo que em português seria “Homem-Aranha: Desligue o Escuro” – nome péssimo, por sinal) estreou na Broadway em junho de 2011 depois de SETE MESES de previews – aquela fase “teste”, na qual a plateia serve de cobaia para melhorar certos aspectos da produção e que costuma durar semanas.
Dirigido pela maluquinha da Julie Taymor, que conquistou o título de primeira mulher a receber um tony de direção por seu trabalho em O Rei Leão, e com músicas escritas pelos vocalista e guitarrista do U2 (???), a super produção custou inicialmente absurdos 75 milhões de dólares. Algo que hoje seria em torno de 540 milhões de reais, o suficiente para comprar o Flamengo.
Isso tudo para culminar em um grande fracasso, reconhecido como o maior investimento (e o maior prejuízo) já visto nos palcos da Broadway.
Ben Brantley, um dos maiores críticos de teatro dos Estados Unidos, escreveu para o The New York Times o seguinte trecho:
“As músicas de Bono e The Edge quase nunca ganham uma forma inteiramente cativante (…). Uma balada barulhenta sobre angústia existencial foi escrita para Peter, que grita com desânimo, “Eu teria sido eu mesmo se eu soubesse quem me tornaria.” Essa pode ser a música-tema oficial de “Spider-Man: Turn Off the Dark.”
Tenho certeza que se você, leitor, não sabia da existência desse fiasco (ou até mesmo sabendo), uma pergunta deve martelar sua cabeça:
POR QUE C?!%$@/ O HOMEM-ARANHA TÁ CANTANDO?
Essa pergunta, na verdade, é MUITO válida. Inclusive, esse tipo de reflexão foi muito negligenciada nos anos que formaram o teatro musical como gênero.
Voltando um pouco no tempo, pensando nas influências que a Operetta e os shows de variedades tiveram no desenvolvimento do Vaudeville, as pessoas não se perguntavam muito isso. Você chegava ao teatro querendo ver uma gatinha girando um bambolê e cantando sobre o seu amor não-correspondido. As coisas eram mais fáceis no início do século 20, sabe?
Com o tempo, o gênero que antes era qualificado mais pela sua forma passou a ser qualificado por seus atributos dramáticos.
Show-Boat, de 1936, chega mudando tudo (mas nem tanto). Ali, houve uma noção maior na inclusão das músicas na narrativa, mas ainda assim o show tinha resquícios do Vaudeville e constantemente parava seu enredo para incluir números com propósito purista de entreter.
É somente em 1943 que o jogo muda mesmo com Oklahoma!, dos meus queridinhos Rodgers e Hammerstein. Agora, a música não só faz sentido com a história, como também, ela é a história.
Para essa galera, se você tirar uma música de uma cena e a cena ainda fizer sentido, ela não ajuda em nada no enredo e, portanto, não deveria ser cantada.
Mesmo assim, essa é uma visão muito simplista da função da música no teatro musical. Uma canção não substitui diálogos (ou vice-versa), muito menos desempenha um papel unicamente expositivo nas informações.
O rolê é que o musical é, por natureza, ABSURDO. Essa é a palavra certa.
É um ABSURDO andar por aí cantando na chuva porque a menina bonita te deu um beijo. É um ABSURDO cantar no meio de uma guerra revolucionária. Mais absurdo ainda é um nerd vestido de aranha cantando músicas do U2.
Mas é aí que tá o grande xis da questão:
Pensa só. Você está no meio de uma multidão de pessoas, todas vestindo cinza.
De repente, um palhaço cruza com o seu caminho.
Diferente, né? Inesquecível, até.
Capaz de você chegar em casa e ainda falar: “Que doido, vi um palhaço hoje!” e nem sequer citar as centenas de pessoas de cinza que te rodearam o dia inteiro.
O diferente marca.
Para uma pessoa ser absurda ao ponto de olhar para o nada e cantar, é porque esse sentimento precisa, necessariamente, ser diferente dos demais.
Entende porque eles cantam? É uma linguagem. Uma maneira de contar uma história. Uma forma de qualificar sistematicamente os sentimentos. Teatro musical é uma hierarquização de emoções.
Inclusive, por isso detesto a ideia do musical como gênero. Musical é uma estrutura narrativa.
Até porque essa lógica que eu acabei de explicar não é a única utilizada no desenvolvimento de um musical. Na verdade, é uma lógica até bem classicista, dos famosos anos dourados.
A ideia de hierarquia entre a fala, o canto e a dança percorre por todo musical já montado,…
“Quando se sente, se diz.
Quando se sente mais, se canta.
Quando se sente mais ainda, se dança.”
…mas essa visão sobre a música no teatro musical de “transporte de um ponto dramático a outro” mudou muito no decorrer do tempo. A partir de Cabaret e Hair, em 1966 e 1969 respectivamente, houve-se uma ideia que a música fazia parte de algo maior. De um tema.
E aí houve-se a diferenciação entre os Book Musicals, como chamo em português de Musicais de Enredo, e os Concept Musicals, os Musicais de Conceito.
Agora, passou a existir uma noção de magnificência da música. Como se ela tivesse algum efeito onipotente. Como se a canção passasse a ser um editorial.
Não confunda as coisas. Ainda existia dramaturgia aqui. Mas, nesses musicais a partir da década de 60, as canções passaram a servir mais a um tema do que a uma narrativa.
Pense em company, por exemplo. Tudo bem que a história é centrada em Bobby e suas complicações com o casamento. Mas todo olho atento consegue enxergar o manifesto ali presente. Existe uma ideia a ser defendida, um tema.
Being Alive pode ser (e é) um desfecho para a jornada emocional de Bobby. Mas, também, é uma defesa de uma ideia que vai além do sentimento particular de um personagem.
Hoje em dia, eu sinto que há uma mistura dos dois. Perdeu-se um pouco o radicalismo das vanguardas sessentistas, mas acredito que ainda existe um questionamento, um equilíbrio entre:
“Qual história vou contar” e “Qual ideia vou transmitir?”.
Até porque, no fim das contas, essas perguntas são iguais.
Mas ok.
Voltando à questão do Homem-Aranha…
Por que C?!%$@/ ele canta?
Na verdade, eu não tenho lá uma resposta bonita pra essa pergunta. A resposta é clara e se resume em dinheiro, até porque o sucesso da trilogia do Sam Raimi deixou claro que esse personagem é uma mina de dinheiro.
Mas acho que o questionamento vai muito mais além.
Por que as pessoas reclamam toda vez que entram no cinema que o filme é musical? Por que existe essa aversão à expressão de sentimentos de maneira não-convencional?
Porque C?!%$@/ ninguém se pergunta a razão de ter um adolescente vestido com um macacão de lycra voando pelo céu de Nova York? Isso já não é absurdo por si só?
“Mas, meu Deus! Se ele cantar… Aí deu pra mim! Chega!”
O rolê é que ser propriamente um musical não foi o motivo do fracasso de Spider-Man: Turn Off the Dark. O propósito foi errado.
Gastaram milhões de dólares e não refletiram os motivos que faziam aquela história valer a pena ser contada. Ou sequer a melhor maneira de contá-la.
No fim, feliz é aquele que senta na cadeira e aceita viver o universo proposto no palco (ou na tela).
E mais feliz é aquele que canta.
E mais feliz ainda é aquele que dança.
BM
Autor: Miguel Magevisk
Revisão e edição: Brígida Rodrigues
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