Misturando teatro e cinema, República Lee resgata um Brasil que precisa ser lembrado

Já é mais do que sabido a genialidade da efervescente cabeça de Tauã Delmiro, mas, a partir de uma ideia de Cella Bartholo, o dramaturgo talvez tenha dado o seu mergulho mais ousado.

Tauã é responsável pelo texto e pela direção do espetáculo República Lee – Um Musical ao Som de Rita, que encerrou sua primeira temporada no último dia 04 de agosto, no Teatro Viradalata, em São Paulo.

Foto por: Gabé

A premissa é simples: um grupo de amigos, artistas, moradores de uma república, resolvem gravar um filme, mas como não têm recursos, usam o próprio apartamento de cenário. Para por aí a simplicidade da história. Do texto, ao elenco, passando pelos recursos, tudo em “República Lee” convida o espectador a uma viagem, uma experiência da qual dificilmente ele sairá ileso.

Em duas horas de espetáculo, a plateia vê no palco, o tempo inteiro, uma simbiose de teatro e cinema. Os atores não só interagem com as projeções, como também gravam cenas ao vivo, durante o musical, no palco, na plateia, nos corredores do teatro. Ou seja, a cada sessão, um novo filme é gravado, o que deixa o público realmente admirado, tamanha a engenhosidade.

O elenco de “República Lee” também vale destaque. Cella Bartholo vive, talvez, um de seus papéis mais maduros. Ela dá vida a Jullie, que surge de forma misteriosa e só consegue uma vaga naquele espaço por conta de sua câmera. Conforme a história vai se desenrolando, podemos conhecer mais dessa personagem, suas camadas, seus traumas, seus amores, o porquê dela se sentir tão em casa com aquelas pessoas. Cella vai da comédia ao drama, da farofa à poesia. Protagoniza cenas delicadas, daquelas que fazem a gente suspirar, a cenas difíceis, que fazem a gente chorar.

Ingrid Klug também é outro nome que chama atenção. Ela dá vida a Sarah, uma atriz frustrada que sonha em uma oportunidade de brilhar, e vê na gravação do filme, a chance de finalmente ser reconhecida. Sarah, aparentemente, só quer ser atriz para ser reconhecida e não vê na arte uma forma de questionar e provocar a sociedade, opinião que vai mudando ao longo do espetáculo. Ingrid tem um timing de comédia perfeito que envolve o público, e quando percebemos, estamos completamente rendidos por aquela personagem que ri e faz rir da própria desgraça. Ingrid também encarna cenas difíceis e passeia lindamente entre os gêneros no decorrer do espetáculo. Sua parceria e química com Danilo, vivido por Rodrigo Salvadoretti, também é impagável e deliciosa de assistir.

Foto: Bianca Tatamiya

Danilo é um gigolô despudorado, que fala e vive de sexo sem o menor constrangimento. Inclusive, passa a maior parte do tempo seminu. Um personagem aparentemente superficial, mas que aos poucos, mostra a importância da liberdade de ser quem se é. Do acolhimento, da rebeldia, a encarnação do deboche e da falta de polidez, ao mesmo tempo que mostra sensibilidade, o quanto valoriza seus amigos, e principalmente, o quanto busca o amor verdadeiro.

Caio Nery também brilha na pele de Caio, seu homônimo: um cineasta, que assim como a irmã, Sarah, se sente um artista incompreendido e desmotivado a seguir seus sonhos. Ele vê na gravação do filme, que na história tem o texto de seu pai, a oportunidade de voltar a fazer o que ama e, quiçá, ter seu nome reconhecido. É espalhafatoso, espaçoso, dramático, extremamente acolhedor e generoso. Caio enche o palco toda vez que está em cena, seja pelos trejeitos, pelo tom de voz, pela energia caótica e contagiante. Ele que está no comando das gravações, e não em vão, tem um plot fundamental no decorrer da história.

Outro nome de peso no elenco é Pedro Balu, que vive Darín, ex-namorado de Caio, com quem teve um término conturbado. Apaixonado por cinema, o argentino é um personagem complexo. A gente passa o espetáculo inteiro tentando entender se ele é do bem, se é do mal, se realmente gosta de Caio, ou gosta mais de si mesmo. Darín mostra, em alguns momentos, certa fragilidade. Em outros, age de forma mais fria e calculista. É dúbio, misterioso, pragmático, um perfil que é interessante de assistir.

Por último, mas não menos importante, Luiza César e João Ferreira como swings também são parte fundamental na engrenagem que faz com que “República Lee” seja uma história que se encaixa em todas as peças.

Foto: Mila Maluhy

República Lee – Um Musical ao Som de Rita se passa em 1968, em plena ditadura militar, período tenebroso de nossa história, e ao mesmo tempo, ano de uma grande ebulição cultural e estudantil em nosso país, os personagens obviamente não passam incólumes de tamanha repressão e covardia. Apesar do pano de fundo difícil de digerir, República Lee consegue a proeza de mostrar de uma forma sutil, ao mesmo tempo marcante, a importância da arte como ferramenta de mudança desde sempre, e como muitas coisas vividas nessa época, infelizmente, ainda são vistas nos dias de hoje. 

Assim como Rita, República Lee, a história com suas músicas perfeitamente encaixadas na narrativa, é corajosa, inteligente, debochada, provocativa e absolutamente necessária.

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