Cooper Howell relata racismo sofrido em musical da Disney

Na última quarta-feira, 3, o ator Cooper Howell, que interpreta o Príncipe Hans em “Frozen: Live at the Hyperion” no Disney’s California Adventure, postou em sua página no facebook um relato sobre o racismo sofrido no musical.

Leia abaixo o depoimento completo, traduzido por Grégory Damaso, membro da nossa equipe.

Paraíso e Inferno: ou minha experiência sendo uma pessoa negra no Teatro Hyperion da Disney #ResponsabilizandoOTeatro

Vou ser direto. Isto é muito assustador de compartilhar.

PARAÍSO: Era uma vez o dia em que Liesl Tommy me colocou no elenco como Hans em Frozen: Live at the Hyperion. E eu fiquei chocado. CHOCADO. Nada na minha história me mostrou que isso era possível. Até aquele momento, todo papel que interpretei tinha a ver com a minha etnia. Cada. Um. Deles. Mesmo nos que não tinham (Shakespeare ou peças clássicas, em sua maioria), sempre me disseram que o fato de eu ser negro foi o que me deu o papel. Então eu não criei expectativas para este papel quando me chamaram para outra fase do teste, eu revirei os olhos e não levei muito a sério. Quero dizer, havia zero por cento de chance da Disney me deixar interpretar um Príncipe, principalmente quando o cara é ruivo no filme.

Mas então eu consegui. E imediatamente tudo o que eu achei que era possível na minha carreira mudou.

Em toda minha vida, nunca me senti negro por dentro. Nunca me senti branco por dentro. Sempre senti que eu era o Cooper, sabe, lá dentro. Mas fosse todos os humanos brancos em Utah me lembrando de que eu era “a pessoa mais branca que eles já haviam conhecido/visto” (o que NÃO tem a ver com a minha pele. Tinha a ver com a forma como eu AGIA) ou o Sr. Johnson, meu professor de teatro da 7ª série, me dizendo que queria “colocar Velcro no teto pra ver se eu ia grudar” ou o Sr. Smith, meu professor de teatro do ensino médio, dizendo “finalmente podemos fazer shows com negros” assim que eu entrei no ensino médio e então não me escolhendo para papeis por causa de como isso iria “parecer”, ou até mesmo meu amigo no ensino médio Tanner Harmon que me chamava de “neguinho”, eu sempre fui lembrado de que era diferente.

Então imagine ganhar um bom dinheiro para vestir um figurino de $10,000 e dançar para 4000 pessoas por dia para interpretar um papel realmente incrível. Uma pessoa fantástica, má e complicada que canta um dueto espetacular e então prende o show com um desprezível monólogo final… E em nenhum momento minha etnia era mencionada porque não importava. O que estava sendo recompensado era o Cooper, meu talento, não a cor da minha pele a qual nunca escolhi. Paraíso.

Liesl SE CERTIFICOU, mais do que o possível, que todas as pessoas não brancas no elenco se sentissem iguais. O reino de Arendelle, afinal de contas, é um lugar imaginado. Pode ser de qualquer jeito. Desde receber executivos da Disney e vê-los dizer que eles estavam felizes de nos ter aqui até conversas com John Lasseter, nós nos sentimos muito bem-vindos interpretando nossos papeis. Ela nos encorajou a mergulhar no roteiro de um desenho animado que eu nem ligava muito até ser contratado. Éramos encorajados a fazer perguntas. Nos sentimos vistos como talentos, não como propriedades.

Havia, claro, desertores. Caramba, eu me lembro de gente numa festa do elenco de “Mickey and the Magical Map”, outra peça na Disney na qual tinha um número de A Princesa e o Sapo e muitos daqueles colegas dizendo que “se uma garota negra Tiana Okoye pode interpretar a Elsa, então eu também posso interpretar a Princesa Tiana” e então olhando para mim para confirmar se estava tudo bem dizer isso, não percebendo que a) ela é uma das minhas melhores amigas b) que eu estou na mesma peça que ela também interpretando um papel que não foi criado para uma pessoa negra c) como isso era racista e d) por que há uma diferença e por que isso não faria sentido.

Na última noite de Liesl, eu fui até ela e disse “não sei por que você fez isso, mas muito obrigado por ME colocar neste papel”, e ela respondeu “você diz por que eu colocaria uma pessoa talentosa e bonita neste papel?”. E eu falei algo do tipo “você sabe, eu sou negro…” e ela virou a cabeça para o lado e disse “não. Não sei por quê. Me diga por que isso importa” e eu fiquei sem resposta. Vendo que eu fiquei sem resposta, ela sorriu. Esta era a resposta. Não havia motivo. Naquele momento, minha visão sobre mim mesmo mudou. Janelas se abriram para o que eu pensava ser possível para mim.

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INFERNO: Então Liesl voltou para Nova Iorque e foi substituída por um homem chamado Roger Castellano como diretor da peça.

A tarefa do Roger, ele nos disse no primeiro dia, era “mudar a peça”. Não nos disseram o que precisaria ser alterado nem por quê, mas que mudanças viriam.

Vocês tem que entender: para um elenco cheio de atores que haviam acabado de passar mais de três meses dissecando um roteiro de 60 páginas da Disney com uma diretora indicada ao Tony como se estivéssemos fazendo Shakespeare, nós inicialmente fomos emocionalmente/mentalmente/espiritualmente resistentes à mudanças. Mas então ficou claro que o espírito de colaboração havia acabado e que as mudanças eram feitas sem o mesmo cuidado, consideração e explicação temática de por quê elas eram feitas. A reação inicial e todo mundo foi de contestar, mas quando as pessoas que questionavam suas críticas começaram a ter menos dias no cronograma ou serem substituídas completamente por um novo artista, o teatro Hyperion se tornou um lugar onde ninguém era permitido a questionar. Injustiças aconteciam para todo lado e ninguém sentia que podia fazer nada por medo de perder seu emprego.

E foi aí que Frozen: Live at the Hyperion virou um inferno.

No meu primeiro ensaio com Roger, ele me levou para uma sala com Domonique Paton, minha melhor amiga e incrível colega que interpretava a princesa Anna na peça. Ela também é negra. Quase todas as cenas do Príncipe Hans na peça eram com a personagem dela então a maioria das críticas seria primeiramente baseada nas interações com ela. Mais cedo, naquele dia, eu me apresentei com uma outra atriz (branca), mas foi na apresentação com Domonique que ele me chamou para fazer críticas. Imagine minha surpresa e decepção quando, depois de como a Liesl havia construído a experiência na peça, ele nos disse:

“QUANDO VOCÊS DOIS SE APRESENTAM JUNTOS, A PEÇA FICA MUITO… RALÉ “

Ralé.

O que mais você acha que isso poderia significar?

Talvez ele poderia dizer “muito contemporânea” enfatizando que talvez estávamos sendo modernos demais nos nossos discursos ou movimentos. Não estávamos. Ele poderia ter dito “muito relaxado” ou “muito solto” para dizer que, talvez, estivéssemos sendo pouco profissionais e bobões porque nós realmente éramos bons amigos. Não estávamos. O melhor que eu e a Sra. Paton conseguimos pensar foi num momento de 8 tempos de improvisação de dança que eu e Domonique decidimos usar como um movimento sincronizado . Acontecia na letra “parece sincronizado, mas pode ser explicado” e achamos, com a liberdade que Christopher (o coreógrafo original) nos deu, que era apropriado, especialmente considerando como todo mundo atrás de nós estava fazendo a dança do robô. Tipo aquela dança do robô dos anos 80.

Mas ele não deixou claro.

Ele só disse “QUANDO VOCÊS DOIS SE APRESENTAM JUNTOS, A PEÇA FICA MUITO… RALÉ”. E quando perguntamos o que ele queria dizer, ele sorriu, deu de ombros e disse “vocês podem descobrir, vocês são espertos”.

E foi assim que eu me tornei o Hans Negro e a Dominique se tornou a Anna Negra.

Depois disso, cada momento em que eu estava no palco era sob o ótica de ser uma pessoa negra na peça. Era como se eu, de repente, tivesse sido dito que eu tinha SORTE o bastante de estar ali e que, sob circunstâncias normais, eu nunca teria conseguido aquele papel. Mas a mensagem estava clara. Ficou especialmente clara quando as apresentações comigo e com a Domonique Paton foram reduzidas drasticamente e mais claro ainda quando a grande maioria dos novos contratados eram brancos. Mas ninguém disse nada.

Ficou ainda MAIS claro quando, nas semanas seguintes, eu e Domonique recebemos VÁRIAS críticas, dez vezes mais que nossos colegas que interpretavam o mesmo papel. Era quase como um jogo. Na verde, nós transformamos num jogo, vendo quem ganharia menos críticas dele no dia. Nossos colegas até brincavam no palco conosco, durante a cena do baile, e faziam piadas perguntando “Já se foram 15 minutos de show. Quantas você acha que já recebeu hoje?”. Mas ninguém disse nada.

As críticas eram sobre todo tipo de coisa. Sobre como estava nossa mão. Se nossa entonação subia ou descia numa palavra. Para qual lado do sofá nos inclinávamos… E estava tudo bem! Quando você é um ator, este é o trabalho… Até começarmos a comparar nossas críticas com os atores que faziam os mesmos papeis e nenhum deles, NENHUM, recebia as mesmas críticas. Nossas críticas eram absurdamente maiores, o momento em que o diretor dava as críticas chegava a durar 10;15 minutos. Os outros recebiam um “Ei, tente fazer isso ou aquilo na próxima vez, ok, tchau” nos corredores. Às vezes eu me sentava na plateia para ver como os outros Hans, alguns dos quais mudavam falas, mudavam a intenção toda das cenas, adicionavam todo tipo de vocalização, cacos, passos de dança e tudo mais, e recebiam ZERO críticas.

Mas eu os assistia para ver o que havia de errado comigo. O que faltava na minha performance? O que eu estou fazendo para estar me sentindo tão excluído? Então eu percebi que o que havia de errado comigo era que eu tinha uma cor diferente dos outros 5 Hans brancos que eles haviam contratado.

Então comecei a receber críticas sobre o meu pênis.

Na maioria das vezes, estas “sessões de pênis”, como eu as chamo, eram feitas em salas isoladas sem nenhum stage manager presente. Era incrivelmente desagradável e antiprofissional. Sendo justo, as calças do Príncipe Hans são APERTADAS! E sim, o Sr. Howell é, de fato, bem grande na frente e atrás, mas os outros caras também eram.

Foi quando eu bati o pé. Se a Disney iria me fornecer um figurino, não era minha responsabilidade consertar o problema deles, especialmente quando meus outros colegas (brancos) receberam um suporte de dança. Mas eles nunca receberam críticas sobre o pênis. Sessões particulares de críticas sobre como seus pênis ficavam durante o show.

Várias e várias vezes me disseram para consertar, para não deixa-lo (meu pau) tão aparente e que “se minha filha fosse mais nova, eu não gostaria que ela fosse numa peça em que você estivesse”, totalmente ofensivo, considerando que a filha dele, uma colega de elenco da peça, era minha amiga e era uma pessoa muito amável.

Ele começou a pedir que eu comprasse um suporte de dança. Era “minha culpa”, “minha responsabilidade”… E foi aí que eu comecei a me posicionar. E então realmente virou um inferno. As críticas ao pênis passaram a ser feitas na frente de todos. Uma vez ele gritou comigo no saguão na frente de todos os meus colegas durante o almoço sobre como incrivelmente antiprofissional eu era, sobre como ele estava cansado de ver o meu pai e que se eu não comprasse o suporte eu não merecia mais estar lá. Tudo isso seguido de uma enxurrada de críticas. Isto não se compara com o que Domonique sofreu e eu a convido a compartilhar o que passou, se ela quiser.

Naquele momento eu ia até cada um dos stage managers no prédio e falava sobre estar recebendo tratamento diferente e sobre o meu pênis. Todos me disseram para fazer uma reclamação na área de “RH”. Eu fiz. Numerosas vezes. Mais meses se passaram. Nada do “RH”. Vários colegas de elenco que viram as críticas que eu recebia me encorajaram a ir ao RH. Eu, na verdade, não sabia o que era o RH.

Assim que meus aliados me explicaram o que era um RH, eu fui até a chefe de RH da Disneylândia e esperei do lado de fora da porta dela. Perguntei se ela havia recebido alguma das reclamações e ela disse que não havia recebido nenhuma reclamação vinda do Hyperion. Nunca.

Então ela me pediu para preencher um formulário do RH.

Ela me fez algumas perguntas e então marcou um segundo encontro. No segundo encontro, ela disse que, para que minha reclamação tivesse credibilidade, eu precisaria que uma testemunha desse um depoimento. As testemunhas, as próprias pessoas que me disseram para ir ao RH, se recusaram. Eles não queriam perder seus empregos. Lembrando agora, isso deve ser o que mais me machuca, mas, enfim… De qualquer forma, ela me disse “bem, sem testemunhas nós teremos que fazer uma investigação e te chamaremos quando terminarmos”.

Nunca mais me ligaram.

Com zero proteção dos stage managers sobre o assédio sexual ou a perseguição racial que eu (e outros) estávamos recebendo, sem mencionar que as reclamações ao RH não serviam para nada, isto é, nem eram passadas adiante, eu pensei em sair. Quando um stage manager branco cometeu um erro na peça e riu para o elenco fazendo uma piada terrivelmente ofensiva, eu me demiti. Eu não importava para a Disney. Como eu me sentia e o que eu passava ali não importavam. Eu era uma propriedade.

Eu saí sem cerimônia. Bizarro. 100% não mágico. Pendurei meu figurino pela última vez e deram a um novo Hans, um que, estranhamente, se parecia muito comigo, e saí do teatro. No parque tocava uma música que dizia “todo desejo que seu coração desejar, será seu” e eu lembro de rir sobre como aquela música parecia morta. O diretor, desde então saiu de lá, mas ainda trabalha como um diretor de teatro musical no sul da Califórnia.

Foi a única vez, 4 anos atrás, que eu senti que era algo além da cor da minha pele pela primeira e única vez na minha carreira profissional. Durou de Março de 2016 a Julho de 2016 e nunca mais aconteceu.

Nunca vou me esquecer dos primeiros dias quando eu via todas aquelas princesas lindas e pensava “uau, eu sou um príncipe neste momento”. Tenho certeza de que isso parece idiota. Mas eu não me sentia idiota. Era um príncipe da Disney! Sim, um príncipe merda, tipo… Ele é um sociopata… MAS ainda é um Príncipe!

O mais especial foi poder olhar nos olhos de Domonique e eu podia ver a mesma intenção de “você acredita que estamos fazendo mesmo isso?”. Nunca achamos que isso aconteceria conosco. Minha etnia sempre foi e sempre será parte da minha carreira e um fator determinante para sua projeção. Sempre vai ser um fator determinante na forma como eu sou tratado pela equipe criativa, pelas pessoas, por aqueles que são autoridades acima de mim, incluindo o governo e a polícia. #SeráQueFoiPorCausaDaMinhaPele”

Dan Moura

Olá, meu nome é Daniel Moura, mas todo mundo me chama de Dan. Tenho 32 anos, e 10 anos atrás eu criei a Broadway Meme com o intuito de espalhar a palavra do teatro musical no Brasil.

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