BM REVIEW: Prêmio Bibi Ferreira
Por Brígida Rodrigues
Evento, que foi adiado pela pandemia, aconteceu na última quarta (20/10) e premiou os melhores do teatro e do teatro musical – mas não sem críticas
O tão esperado momento aconteceu: aos poucos, o teatro está voltando. Devagar, a cortina está se abrindo para o público e a esperança de que o pesadelo coletivo que foram os últimos dois anos está finalmente se mostrando. Mas a noite do Bibi foi também uma mistura de muita alegria e dor: o pesadelo está finalmente passando, mas não sem consequências.
A pandemia, colocada na equação com o negacionismo e a incompetência do governo atual, afetou profundamente a vida dos brasileiros, especialmente aqueles que dependiam direta e indiretamente da cultura. Com os teatros fechados, centenas de pessoas ficaram sem as suas fontes de renda: dos artistas, passando pelos técnicos de palco, até os pipoqueiros e vendedores ambulantes que trabalham nos entornos de casas de evento. E auxílio para pessoas da cultura? Não tivemos por aqui.
E para muito além das consequências econômicas disso, chegamos a saúde mental. Sim, porque é preciso falar sobre isso. A falta do trabalho, especialmente aquele que não só gera a nossa fonte de renda mas também a satisfação, a alegria, afeta profundamente a saúde mental e emocional. Muitos de nós puderam trabalhar à distância, mesmo que com (muito) estresse e dificuldades. Mas para a maioria esmagadora dos brasileiros isso sequer foi opção.
Portanto, a premiação deste ano marca, para além do reconhecimento dos indicados e vencedores, a esperança. Esperança de que estamos andando pelo caminho tortuoso da normalidade rumo a um futuro que não pede, mas exige mudanças. E essas mudanças já perderam o prazo de validade. A décadas a cortina do teatro musical se abre para um mundo fantástico para os expectadores, mas se fecha para uma realidade muito cinzenta e amarga nas coxias: falta de representatividade, sexismo, gordofobia, transfobia, abuso mental. Podemos não saber o que nos aguarda nos anos que se seguirão, mas uma coisa é certa: não há tempo melhor que o presente para encarar verdades dolorosas e mudá-las.
West End e Broadway, só este ano, nos presentearam com algumas notícias promissoras: a primeira Christine Daee negra, interpretada pela maravilhosa Lucy St. Louis; e um elenco principal de mulheres pretas em Six. Fugindo um pouco do Teatro Musical para visitarmos rapidamente o universo ainda mais desigual da Ópera, o Metropolitan Museum of Art terá a primeira obra de um compositor negro, Terence Blanchard, sendo montada e apresentada ainda em 2021. Em 150 anos de existência. Na verdade, retirem o exemplo. É até hilário comemorarmos esse absurdo. Libretistas mulheres? Não vimos por aqui também. Talvez a sociedade precise de mais 150 anos para absorver, mas do jeito que caminhamos pelas mudanças climáticas é bastante provável que nem exista humanidade até lá (e o expectador conservador suspiraria aliviado). Desastres ambientais? Tudo bem. Diversidade? É demais.
Só que a verdade é essa: não podemos e não queremos esperar nem mais uma semana. E já sabemos que não podemos contar com o governo atual, então façamos o famoso corre que é a palavra que define qualquer artista e produtor cultural. Façamos acontecer com as ferramentas que tivermos e que as oportunidades se abram. Pode faltar de tudo nesse país, mas não falta talento. E não falta força, também. Estamos, sim, um tanto quanto esgotados emocionalmente, mas não tem energia que não se recarregue com um bom espetáculo.
E se 2019 já se mostrava um ano promissor para a diversidade, estou ansiosa pelo próximo. A voz poderosa de Letícia Soares soou tão forte no palco, carregada de um significado não só da própria personagem como da própria artista, que me emociono só de escrever sobre isso. Não havia tido a chance de assisti-la presencialmente até então, e se já era catalisador ouvir a sua voz e notar sua presença de palco perfeita por uma tela, achei que não chegaria ao fim de “Estou Aqui” para escrever este texto. E Letícia não é uma potência nos palcos, mas também fora dele. Aquele ser humano raro e bonito, atencioso. Letícia, desejamos todo o sucesso do mundo para você, e embora a disputa tenha sido acirrada, não foi nada menos que justa. Que venham mais dezenas de musicais para você, porque o presente é todo nosso.
O que nos leva a ponto baixo da premiação deste ano. A Cor Púrpura teve nove indicações ao prêmio, e levou apenas um: o de melhor atriz para Letícia Soares. Está claro que a premiação precisa melhorar, e um muito, os seus critérios de avaliação, porque alguns resultados foram decepcionantes e passíveis de questionamento por parte dos expectadores que ansiavam que o musical levasse mais prêmios para casa. Além disso, também sentimos falta de mais indicações para Dona Ivone Lara – O Musical, que das cinco categorias em que foi indicado não levou nenhuma estatueta.
É frustrante ainda vermos tanta disparidade nas oportunidades e nos resultados. Premiações como essa não são apenas um termômetro dos nossos palcos, da potência dos nossos artistas, mas é também uma lupa para enxergarmos o que acontece atrás dele. É evidente que isso reflete não apenas um problema de oportunidades, mas de toda a estrutura social do país que é extremamente desigual. Mas é possível reverter isso. Aliás, já começamos. E é um trabalho em equipe. Os palcos não foram feitos para uma única estrela brilhar. Ninguém monta um espetáculo sozinho, e a arte está cada vez mais colaborativa. Esperamos que daí nasça um novo conceito não só de fazer teatro, mas de viver. E se há um problema de falta de representatividade, o mínimo que podemos esperar é que as premiações vejam, percebam, acolham. E façam alguma coisa sobre isso. Simpósios, diálogos públicos, oficinas, ateliês de criação. Ideias não faltam, e os resultados, com toda certeza, virão.
E por falarmos em mudança, muito justo que a cerimônia tenha sido transmitida ao vivo e agora esteja disponível aqui. Os fãs de teatro musical sofrem com a inacessibilidade dos seus shows favoritos há anos – e isso não é um problema só no Brasil. Não vamos fechar os olhos para o quão difícil é trazer um espetáculo à vida. É muito caro. É desgastante. Envolve uma equipe muito especializada e não há margem para erros. A cobrança é enorme, o desgaste para o artista é intenso. É um espetáculo, afinal de contas. Não há teatros preparados em todas as cidades, e é complexo fazer o cálculo do preço dos ingressos porque na maior parte das vezes o investimento é muito alto. Mas finalmente conseguimos enterrar de vez aquele discurso fraquíssimo de que um proshoot faria as pessoas desistirem de ir ao teatro. E embora seja custoso bancar uma gravação, e tenha toda uma questão de papelada e direitos autorais, é uma alternativa que deveria ser considerada para os espetáculos nacionais.
Imaginem que incrível poder assistir Chaves – Um Tributo Musical? O espetáculo, com idealização de Adriana Del Claro e direção musical de Fernanda Maia, teve dez indicações e levou quatro estatuetas: melhor ator, para Mateus Ribeiro; melhor atriz coadjuvante, Carol Costa; melhor ator coadjuvante, Diego Velloso; e melhor roteiro original, Fernanda Maia. Chaves chegou despretensioso, deixando muita gente desconfiada, mas no final surpreendeu a todos. É bonito, cativante, nostálgico. Impossível não se emocionar. Os vencedores levaram o prêmio merecidamente, porque entre todos os triunfos de Chaves, o elenco certamente se destaca.
Carol Costa, que brilhou na pele da Chiquinha, fez um discurso necessário ao valorizar a importância de todos os profissionais no palco. “Eu sou atriz, sou cantora, mas antes de tudo eu sou uma bailarina.”. Carol pediu que os criativos e produtores de elenco dessem mais oportunidades para as pessoas que compõe o ensemble e o coro. Ela ainda finalizou pedindo mais valorização do teatro musical brasileiro – que a cada ano se destaca mais e mais, mostrando que temos força e talento para irmos além das adaptações da Broadway.
Mateus Ribeiro também se destacou na pele do personagem Chaves. A categoria estava disputadíssima, e muitas apostas iam para Arthur Berges, o músico que finge ser professor em Escola do Rock. Mas no final, não teve jeito. Mateus conquistou e emocionou a todos com o seu talento, num musical que acabou sendo uma grata surpresa da temporada.
E por falar em surpresas, tivemos Nicole Rosemberg ganhando o prêmio por Revelação em Musicais. Nicole vive Luísa, a amante do nosso segundo mascarado favorito (o primeiro reestreou em grande estilo na Broadway na última sexta-feira, 23/10), no musical Zorro: Nasce Uma Lenda. O espetáculo imersivo, que ficou em cartaz no espaço cênico 033 Rooftop, marcou os cem anos da criação do personagem de Johnston McCulley. Para a plateia, era possível degustar um pouco da culinária espanhola, e o público também podia ter aulas de dança flamenca antes do espetáculo começar. Além do prêmio Relevação, Zorro também levou Melhor Coreografia para Bárbara Guerra e Johnny Camolese.
Por Melhor Musical Brasileiro, Chaves levou o Bibi Ferreira e, por Melhor Musical, Escola do Rock foi o escolhido entre nomes de peso como A Cor Púrpura – o que deixou muita gente insatisfeita. De todo modo, o prêmio deste ano foi, de fato, marcado por mais diversidade. Ainda estamos distantes do que seria considerado justo, mas talvez seja uma o indicativo de que estamos no caminho certo.
Alessandra Mestrini e Miguel Falabella foram, novamente, os anfitriões da noite, e abriram o evento com uma satírica apresentação sobre a situação política atual do nosso país, citando a recusa das vacinas por parte do presidente e a marca terrível que atingimos no número de mortos. Se posicionar neste momento não é uma escolha, é uma necessidade. Política é tudo, e afeta a vida de todos no macro e no micro. Uma canetada em Brasília e a vida de milhões de brasileiros são postas à prova, e a crise da saúde que vivemos de 2020 para cá só deixa isso ainda mais evidente. Portanto, teria sido no mínimo decepcionante se a premiação não tivesse incluído em seus discursos oficiais um grito contra esse momento terrível que vivemos, especialmente sendo a cultura e arte os campos mais vulneráveis.
O In Memorian também merece destaque. Com a música Alabanza, de In The Heights, homenageou-se pessoas importantes do setor artístico que partiram, como Gésio Amadeu, Artur Xexéo, Tarcísio Meira, Flavio Migliaccio, Paulo Gustavo, Carlos Leça entre outros atores e atrizes e profissionais direta ou indiretamente ligados ao teatro.
Entre outros convidados, estavam o Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, que deu o discurso oficial de abertura. Em sua fala, Nunes comemorou a marca de 100% de vacinados com a primeira dose em pessoas acima de 18 anos na cidade. O idealizador do Prêmio, Marllos Silva, também esteve presente e discursou emocionado sobre o momento histórico que era aquela volta aos teatros. Importante ressaltar que o evento respeitou a todos os protocolos de segurança: imprensa e convidados só podiam entrar com comprovante de vacinação, e a máscara era presença obrigatória, não podendo ser retirada nem mesmo para as fotos (mil pontos para a organização aqui!). Qualquer convidado que tentasse tirá-la para a foto era rapidamente e educadamente repreendido por um segurança. O teatro também estava operando com capacidade reduzida, e em nenhum momento nos sentimos em risco por estarmos ali. Esperamos que todos os teatros e organizadores tenham a mesma consciência nesse retorno, sempre pensando que a pandemia não acabou e que temos, sim, um caminho longo pela frente.
Aliás, parece surreal que esses quase 1 ano e 7 meses de fechamento dos teatros e casas de cultura esteja finalmente acabando. O que antes era comum, como se encontrar com amigos e conhecidos num espetáculo, se tornou um presente. E um que todos no Prêmio Bibi Ferreira estavam dispostos a agarrar. Arte é contato, arte é público, arte é corpo. Arte salva. E por mais que os artistas tenham se esforçado durante o isolamento para levar alegria para as casas das pessoas – e, de fato, levaram – nada, nada mesmo, supera ver o outro ao vivo. Nada supera essa emoção de transpor o abstrato para o real.
E mesmo em sua simplicidade e correria, tanto o Tony Awards quanto o Bibi Ferreira este ano conseguiram o principal: mostrar o porquê o público vai sempre continuar voltando ao teatro, mesmo quando a internet e a tecnologias continuem a evoluir para trazer experiências as mais realísticas possível. Porque nada supera ver Irene Ravache ao vivo, mesmo que a alguns metros de distância; ouvir a cadência da voz de uma atriz poderosa como ela, com suas palavras de sabedoria, vai ser sempre uma experiência de presença. O teatro vai ser sempre uma experiência de presença. E que sejam todos muito bem-vindos de volta! Algo me diz que será um ano e tanto.
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