BM REVIEW: “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”

“Brenda Lee e o Palácio das Princesas” é um ato de amor em forma de musical biográfico

São raros os momentos em que o Teatro Musical registra marcos históricos. Com os avanços da arte e da sociedade, esses marcos andam cada vez mais espaçados dentro da nossa linha do tempo. Contudo, a questão trans segue em defasagem nos palcos de teatro (assim como em vários outros âmbitos da cultura e da civilização). Há uma baixíssima quantidade de personagens, histórias e vivências (tomemos como exemplos: Geni, de a “A Ópera do Malandro”, Frank n’ Furter de “Rocky Horror”); há também a falta da preocupação com as tessituras vocais trans, visto que são vozes diferentes do CIStema; e além de tudo, o uso do trans-fake (quando atores/atrizes cis-gênero interpretam personagens trans, dessa forma subtraindo as pouquíssimas oportunidades que artistas trans/travestis têm dentro do meio de Teatro Musical). É preciso mudar. 

“Brenda Lee e o Palácio das Princesas” é um grande ato de amor em forma de musical biográfico. O que o Núcleo Experimental construiu nesse espetáculo carrega uma aura mágica que se acende toda vez que as 6 travestis se juntam naquele palco e começam a contar a história verídica de Brenda. É uma aura que denota uma beleza que estava ali o tempo todo, nas nossas ruas, nas nossas mentes, nos nossos sussurros, mas que nunca prestávamos atenção; e agora que está sobre a luz dos holofotes, vemos como é lindo, real, forte, delicado, intenso, necessário, importante, e como não podemos parar de olhar.

O espetáculo, com texto brilhante de Fernanda Maia, conta a história real da travesti Brenda Lee, que durante os anos 80 e 90 instaurou em São Paulo uma Casa de Apoio para travestis e/ou portadores de HIV/Aids que não tinham onde morar. Ficou conhecida como “anjo da guarda das travestis”, e por conta de sua militância, trabalho e empenho, culminou nas primeiras políticas públicas para travestis e para o combate ao HIV/Aids no Brasil. Através da pesquisa de Fernanda Maia, e das representações das atrizes, a história constrói não só a vida de Brenda dentro do chamado “Palácio das Princesas” (nome do edifício), como também das moradoras, concedendo a possibilidade de diferentes vivências e histórias acerca da realidade travesti serem inseridas na trama de maneira natural e inclusive didática. Um texto que passeia entre o delicado e o teso, que equilibra o riso e o choro, e que não só honra a memória de Brenda Lee como também possibilita que as artistas transvestigêneres honrem suas próprias vidas. São raros os momentos em que o Teatro Musical registra marcos históricos.

Verônica Valenttino é sem dúvida nenhuma uma força da natureza. A forma como a atriz consegue encarnar Brenda Lee, passear entre a força e a delicadeza nas várias nuances da narrativa e acima de tudo carregar um carisma absoluto para com o público e o elenco é louvável. Uma atriz nordestina formidável, pela qual nos apaixonamos logo de início, e torcemos juntos e sofremos juntos. Seus números são impecáveis, logo em sua entrada nos apresenta um dos temas musicais do espetáculo ao cantar “Você não duraria nem ao menos 10 minutos / Se estivesse na minha pele pelas ruas da cidade”. Em sua última canção, próxima ao final do espetáculo, Verônica sumariza a beleza e a brutalidade de ser uma travesti em nossa sociedade transfóbica. É de fato um dos ápices da peça, onde todes prendem o fôlego, enquanto a protagonista olha em nossos olhos e questiona “O que você quer matar em mim?”. Arrebatadora, para dizer o mínimo.

Foto por Alê Catan

Tem também daquelas atrizes que quando sobem ao palco você sente a reação da plateia dizendo “Ela é boa né?”. Sim, Marina Mathey é boa. Muito boa. Com um controle e presença de cena admirável, Marina nos entrega a personagem Cinthia Minelli à priori como uma espécie de antagonista, mas que depois que a compreendemos, carrega um dos mais lindos plots da narrativa, ao encontrar o amor em suas companheiras travestis. Destaque para seu número final, em que representa grandes divas da música mundial, como Ângela Maria, Gloria Gaynor e Edith Piaf.

Tyller Antunes, interpreta a jovem Ariela Del Mare, e traz em si uma performance vocal graciosa. Com leveza e simpatia, relata em sua personagem o desejo de fazer a cirurgia de redesignação, quebrando tabus e trazendo naturalidade ao assunto. 

A atriz Olivia Lopes, munida de interpretação e qualidade de representação, representa Raíssa como a personagem mais jovem e doce da narrativa, mas que assim como as outras, consegue trabalhar a força e a delicadeza quando necessário. Numa das mais belas e curtas canções do espetáculo, arranca sorrisos e suspiros da plateia, enquanto nos conta do passado de sua personagem. Noutra cena, denuncia o descaso dos serviços públicos para com os documentos de pessoas trans, com assertividade e precisão.

Ambrosia tem uma intensidade e vigor só dela. Seu número principal, onde delata o vício da sociedade em espetacularizar a tortura e o sofrimento, é um dos pontos mais poderosos do espetáculo. A atriz interpreta Isabelle La Bête, que mora na casa de Brenda e faz prostituição, mas seu maior sonho é ingressar numa universidade. “Eu sei que não tem lugar pra mim numa faculdade, é sonho”. Uma pesquisa da Andifes deste ano indica que estudantes trans e travestis em universidades estão no percentual de 0,2%.

Leona Jhovs contrapõe perfeitamente o núcleo das princesas, com uma presença de palco absurda, nos apresenta a personagem Blanche de Niége. Contrasta com Olívia, Tyller e Ambrosia, e ilustra as vivências trans-travestis acerca da dependência às drogas, e sobretudo, com o desejo de ser amada e assumida por um homem. Carrega a canção mais solene do espetáculo, onde questiona e delata a solidão travesti.

“Brenda Lee e o Palácio das Princesas” não seria o que é também não fosse por suas músicas. O trabalho de Rafa Miranda como compositor das canções, e de Fernanda Maia como letrista do espetáculo é de suma precisão. A forma como Rafa Miranda consegue misturar rock, pop, brega, funk, rap, maxixe, samba-enredo e ainda referenciar musicais da Broadway e clássicos da Disney por meio da música é de um talento absurdo. É definitivamente uma linguagem musical única, que funciona perfeitamente com as várias vivências que somos apresentades na narrativa do espetáculo, e ainda assim consegue ter uma identidade própria e conivente com o todo, representando a música brasileira e a cultura LGBTQIAP+ simultaneamente. Este é o segundo espetáculo de autoria de Rafa Miranda e Fernanda Maia juntos (o primeiro foi “Lembro Todo Dia de Você”), e só comprova que estão envelhecendo como vinho.

O espetáculo conta com a direção geral de Zé Henrique de Paula, e como já é de se esperar, é sublime. Os cenários, iluminação, figurinos, ambientação, somados à preparação de elenco de Inês Aranha, as coreografias e direções de movimento de Gabriel Malo, às músicas de Rafa Miranda, ao texto de Fernanda Maia, e principalmente ao elenco de 6 travestis e Fábio Redkowicz, transformam o espaço do Núcleo Experimental num microcosmo lindo, simples porém absoluto. Este é o Palácio das Princesas.

Brenda Lee existe e resiste através de cada atriz travesti que sobe ao palco do Núcleo e é aplaudida. Resiste através de cada pessoa trans que ocupa um espaço naquela plateia, e de cada pessoa cis que assiste, escuta, aprende e dá vazão àquelus que nunca tiveram nenhuma atenção ou carinho, senão de seus pares. É um grande ato de amor em forma de musical e precisa ser assistido. Prestigie a existência dessa história e dessas vivências. Está acontecendo agora, e precisa continuar. São raros os momentos em que o Teatro Musical registra marcos históricos.

Guilherme Gila

Gila aqui! Apaixonado por música e teatro desde que me conheço por gente (e por músico e ator também hehe). É fácil me fazer falar, difícil é me fazer parar. Um prazer!

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