BM escreve: Legalmente Loira e o que torna um musical perfeito

Quando especialistas se sujeitam à tarefa de listar musicais perfeitos, muitos títulos vêm à mente. Seja “West Side Story”, “Os Miseráveis” ou “Cabaret”, a verdade é que todos esses títulos possuem algo em comum: uma boa história.

A questão é que não só de uma boa história que um enredo se garante. Fatores como estrutura narrativa, letras e músicas inteligentes e personagens cativantes convergem para gerar um musical perfeito. E, para fugir do óbvio, o título que trago é “Legalmente Loira”.

“Legally Blonde” é um musical de 2007 adaptado do livro e do filme homônimo. Com roteiro de Heather Hach, letras de Nell Benjamin e músicas de Laurence O’Keefe, o espetáculo acompanha Elle Woods, uma garota loira graduanda em moda que, por levar um pé na bunda do seu namorado e ainda por querer estar com ele, decide seguí-lo ao entrar em Harvard para cursar Direito. No entanto, ela se apaixona pelo curso e a busca pelo amor de Warner acaba por se tornar a conquista de Elle por seu lugar no mundo.

Sendo sincero, eu não acredito que realmente existam musicais perfeitos. Até porque uma obra é viva, a visão artística e as divergências entre produções contam muito nessa soma. Mas, parando pra pensar nos pilares que sustentam um musical, eu considero importante destacar esses: Teletransporte, contrapartida, clímax, música e a lembrancinha do fim de festa.

Ok, parece nada a ver, eu sei. Mas calma que eu explico.

Teletransporte

Primeira campainha. Segunda campainha. Terceira campainha.

O maestro levanta sua batuta, os violinos se posicionam, o cara da bateria já está doido pra bater no prato. A abertura começa.

Pronto. Perfeito! Já estamos dentro desse universo!

Só que não.

Toda história precisa de um contexto, de um ponto de partida. Tanto que as primeiras músicas sempre estabelecem as regras daquele universo que estamos investigando. “Welcome to the Renaissance” (Something Rotten!) é um ótimo exemplo.

E Legalmente Loira faz isso com maestria. Os primeiros 20 minutos que incluem a abertura, “Serious” e “What You Want” trabalham, respectivamente, definindo três coisas muito importantes: O universo de Elle, as “Limitações” de Elle e os desejos de Elle.

Omigod You Guys: A felicidade reina em Delta Nu, a futilidade cor-de-rosa demonstra que, para as garotas que ali vivem, nada é impossível. O número também estabelece que Elle se destaca entre as outras por sua sagacidade  e espírito de liderança.

Serious: O choque de realidade do término de Warner, seguido pela minimização das capacidades de Elle são o conflito inicial, tudo agora é impossível.

What you want: Para além de uma “Canção do ‘Eu Quero’”, a música solidifica um sentimento mais profundo ainda – a capacidade de transgressão das convenções sociais de Elle. Além disso, essa canção contribui muito na unidade do score como um todo, mas isso eu vou explicar no tópico “música”.

Com base nisso, é plausível comparar os primeiros minutos de um musical a um cartão de visitas, e nisso Legally Blonde impressiona. Nos primeiros poucos instantes você já está na ponta da cadeira se perguntando “Será que essa garota vai conseguir?” e é exatamente isso que te teletransporta para aquele universo.

Contrapartida Social

Poucas coisas mudam o mundo tanto quanto uma história bem contada.

E é fato que Legally Blonde representa o ideal feminista do início do século 21 – o boom econômico, as políticas progressistas começando a serem reais: não havia outro tempo melhor para ser mulher.

Por mais que seja um musical branquíssimo e com representatividade duvidável (mesmo com o revival do Regent’s Park que tratou de corrigir isso), Elle Woods representa, para as plateias de 2007, a possibilidade feminina de pertencer em lugares antes inimagináveis.

A questão é que, pasmem: esse musical é uma encomenda. A gente, como plateia, não costuma pensar muito nisso, até porque existe uma glamourização da função criativa no teatro musical, uma ideia de que os escritores e compositores depositaram anos de disposição nesse projeto porque sonham com sua realização. Mas às vezes, as pessoas só estão envolvidas num projeto porque foram contratadas mesmo, e não há problema algum nisso. A verdade é que, em algum dia, os gráficos da bilheteria do filme acabaram por estar na mesa de algum produtor, que teve a brilhante ideia de replicar o sucesso das telonas nos palcos. E tudo isso porque é rentável, dá dinheiro. E o dinheiro não é o grande vilão aqui.

A mediocridade que o dinheiro traz consigo que é.

Nos últimos anos, houve esse movimento de trazer filmes aos palcos e isso é natural, a Broadway tem essa relação com Hollywood e, em alguns contextos, essa dinâmica foi até oposta, por muito tempo os filmes musicais reinavam nas salas de cinema. Só que casos como o fiasco de Tootsie e a pobreza artística de Mean Girls mostram que a galera costuma ser preguiçosa nessa transição.

Entretanto, é fato que a equipe criativa de Legalmente Loira realmente se empenhou, e isso é motivo de reconhecimento, porque ceder ao mais do mesmo é muito fácil na briga de telões da Times Square. O que vende nem sempre é o que tem conteúdo, mas, nesse caso, existe uma agenda a ser defendida.

Tá, ok. Legalmente Loira não inventou o feminismo, nem mesmo representa o seu melhor aspecto, mas é importante salientar que essa é uma obra para as massas, pra vender milhões mesmo, e saber que essa quantidade imensa de pessoas pelo menos foi exposta a essa mensagem e embarcou na jornada de Elle é reconfortante.

Exatamente por isso que Legally Blonde acerta nesse tópico: o musical tem uma mensagem pra dar pro mundo, uma mensagem útil. Uma contrapartida.

Clímax

Os grandes teóricos da dramaturgia buscaram, por séculos, a estrutura perfeita para uma história. O engraçado é que tanto na estrutura de três atos de Aristóteles, tanto no esquema quinário de Shakespeare, todas elas apresentam clímax. Porque uma história sem clímax não tem sentido em ser contada. Todo mundo que desce do escorregador tem que subir a escadinha e chegar no topo, senão não tem graça, né?

E é aí que Legalmente Loira arrasa: seu clímax é muito bom, mas muito bom. Tão bom que aproveitaram a música título para esse momento, e como se não bastasse, ainda fizeram um remix com direito a vilã virando a casaca, carros de golfe no palco e muita coreografia irlandesa. Tudo bem que nada disso garante nada, mas a chave mesmo desse clímax está na música.

“Legally Blonde” é a resposta direta “Serious”.

É a Elle aceitando o “destino” que Warner tanto pregou. E a plateia fica como? Indignada, é óbvio!

“Gata, a gente não ficou aqui esse tempo todo pra você desistir!”

E é essa energia extra que faz com que o resto da história se deslanche.

Música 

Aproveitando que a gente já começou a falar de música, vamos pro quarto e penúltimo tópico dessa lista.

Eu sou um grande fã do trabalho do Laurence O’Keefe e acho, inclusive, que ele é subaproveitado na indústria. Que as músicas de Legalmente Loira são ótimas, não dá pra negar. Mas eu acredito que o seu diferencial seja bem mais sutil que o esperado.

Quando compositores se propõem a desenvolver um musical, é comum a divisão das ideias musicais em temas, os chamados Leitmotifs. Sondheim foi mestre na aplicação dessa técnica, algo muito visível no seu trabalho em Sweeney Todd, com o Dies Irae, e, principalmente, em Into the Woods. Ele chegou no ponto central da história: os feijões mágicos, e desenvolveu o score inteiro a partir de um tema atribuído aos feijões.

Isso é genial, porque permite que as músicas brilhem individualmente na narrativa mas também possuam uma unidade de coesão entre si. É tudo sobre não virar um grande Frankenstein no final.

Agora, o feito de Legally Blonde é reconhecer que o seu cerne, o seu ponto principal, sua palavra chave é: amor. E a jornada de Elle no entendimento desse amor que ela sente pelo Warner. Se foi o amor que fez com que ela virasse seu mundo de pernas pro ar, é justo que ele seja um ponto central na música, pois é sua força motriz.

É aí que o querido do Laurence desenvolve uma célula musical, um refrãozinho, que se repete no decorrer da história e que aparece, pela primeira vez, na Canção do ‘Eu Quero’ de Elle, “What you want”. Essa célula resume a motivação de Elle.

Mas então vem o xis da questão: a motivação de Elle muda no decorrer do enredo. E é nessa constante ressignificação da motivação de Elle que essa célula musical se prova eficaz, aparecendo, inclusive, na voz de Emmett e Paulette, seus maiores apoiadores.

No clímax, esse tema aparece em contraponto. Isto é, uma melodia que surge na música ao mesmo tempo que o tema principal. É aquele momento onde dois personagens cantam coisas diferentes mas juntos. Eu, particularmente, amo.

É usando esse refrãozinho que ela entra em Harvard, por exemplo, um ponto importantíssimo da narrativa.

A canção ‘Legally Blonde’ é basicamente sobre Elle desistindo e Emmett tentando impedi-la de ir embora, usando o argumento do… Amor!

E no fim, o finale retoma essa célula chegando a conclusão derradeira de Elle, que diz “I found my way through love”. Foi o amor que permitiu que ela encontrasse seu caminho, e foi, através do amor, que acompanhamos essa história.

É meio complexo explicar músicas por texto, mas espero que tenha ficado claro.

Além disso, quero destacar as letras da Nell Benjamin, acho que ela fez um ótimo trabalho, fato esse que não se repete em seu projeto mais recente “Mean Girls”.

Lembrancinha

Tá, o que raios é a lembrancinha de um musical?

Sabe quando você era criança e ia naquelas festas de cerimonial? Muita gente pra brincar, muito cachorro quente pra comer. Mas aí você pisca e em um segundo a festa acabou, certo?

Na verdade ainda não acabou, porque tem aquele bando de doce na sacolinha que você levou pra casa.

E é exatamente pra isso que serve a lembrancinha de um musical: quando tá tudo frio, acabando, quando a história tá morrendo, você ganha uma bomba de êxtase e sai do teatro falando daquilo.

São certos pontos da narrativa que servem única e exclusivamente para satisfazer o público mesmo. No livro “The Secret Life of the American Musical”, o autor Jack Viertel fala sobre isso, usando de exemplo a sua participação como produtor na concepção de Hairspray. 

Traduzi livremente o trecho:

“Um dos argumentos que eu perdi com o diretor de Hairspray é sobre o penúltimo momento do show. É a cena do concurso de Miss Teenage Hairspray, na qual o elenco inteiro participa, menos duas pessoas: Tracy, nossa heroína, e sua mãe, Edna, feita em drag por Harvey Fierstein. Mas tem uma surpresa à espreita, no palco tem um gigante tubo de laquê com alguém escondido dentro. Quem? Eu acreditava que deveria ser a Tracy, ela é a heroína, a grande causadora daquela situação, e será a salvadora do dia. Ela tem que estar no tubo e aparecer da maneira mais espetacular possível.

‘Absurdo!’ disse o diretor. ‘É a Edna que deve estar no tubo’.

‘Por quê?’ Eu perguntava. ‘Não faz sentido ser a Edna!’.

‘Porque’, ele disse, ‘quando a plateia presenciar a explosão que será Harvey Fierstein, em drag num vestidão vermelho saindo daquele tubo, eles vão aplaudir de pé por felicidade! E não vão se importar com mais nada.’

O diretor estava certo, claro”.

Às vezes, é sobre escolher entre o Show Business e a narrativa. Na maioria das vezes, a narrativa ganha. Mas em algumas situações extremamente específicas, devem ser tomadas certas liberdades.

É justamente por isso que “Os Miseráveis” termina com uma reprise de “Do You Hear the People Sing” e não necessariamente com a morte de Valjean. Tenho certeza que as plateias chorariam bem menos se a peça acabasse ali, o cara na cadeira e fim.

E o ponto chave do final de Legally Blonde é a concretização de uma profecia já antes estabelecida. No primeiro número, Elle acreditava que ia se casar. A gente compra essa história quando a cortina se abre, o espetáculo começa e a gente já pensa em casamento.

Mas aí acontece um monte de coisa no meio e… tcharam! Não é que ela vai se casar mesmo? E com o mocinho!

Tá, mas e aí?

Óbvio que não considero Legally Blonde o melhor musical do mundo, existem outros melhores ainda. Mas não enxergar a funcionalidade desse libretto pode ser até uma certa ignorância.

No fim, existe essa teoria toda por trás da concepção de um musical que, a princípio, foi encomendado para servir única e exclusivamente para entretenimento. E isso é admirável. Propostas assim, de musicais projetados por grandes corporações, tendem a falhar por não terem substância, um tema, um assunto relevante. Alma.

Mas Legally Blonde se destaca, e isso, no fim, é mais uma vitória para o mercado de teatro musical. 

Miguel Magevski

Miguel Magevski é um estudante de arquitetura metido a compositor, versionista e aspirante a produtor cultural. Mora em Vitória, no Espírito Santo e é apaixonado por musicais desde pequeno. Seu hobby favorito é ter opiniões fortes sobre assuntos aleatórios e guardar o máximo de curiosidades inúteis possíveis. Afinal, é pra isso que serve a vida, não é?

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