BM escreve – Jesus Christ Superstar: um ensaio sobre revoltas

Em primeiro lugar, antes de mergulhar no tema central desta peça musical, é importante se despir dos pré-conceitos que uma história sobre Jesus carrega, principalmente porque essa em especial não envolve, em nenhum momento, quaisquer elementos espirituais. Pelo contrário, o musical não hesita em afirmar que essa não é uma história sobre o filho de deus, ou uma divindade, ou um profeta. Ela é uma visão puramente antropológica dos eventos, como visto na primeira estrofe da primeira música verbalizada da peça, Heaven on Their Minds, que é uma afirmação disso, “[…] Se separar o mito do homem, você verá onde já já vamos estar.”, frase dita por Judas. É a abertura da narrativa, com um convite a acompanharmos a história de uma figura humana, de figuras humanas, e, especialmente, sua revolta.

O enredo vai além de uma narrativa em que os personagens são passivos à história, mas uma narrativa guiada pelos próprios personagens, como indivíduos, pois o verdadeiro tema da peça é sobre os estágios de uma revolta, como ela amadurece e encontra seu fim, que, no caso do musical, é um fim trágico. Jesus é a personificação de sua própria revolta, mais precisamente dos ideais que a movimentam, ao mesmo tempo que é um personagem humano. Seu arco, emoções e falas são paralelos diretos com a situação em que o grupo rebelde protagonista se encontra. 

No início, esperança, sonhos e positividade, com a abertura triunfal na canção Overture; que segue, em sequência, desordem, confusão, claro em What’s the Buzz, que explora a ansiedade e barulho do movimento, e na banalização da causa, como em The Temple, em que há uma deturpação dos ideais: “Meu templo deveria ser um lar para rezar, mas vocês o transformaram num ninho de ladrões”, frase dita por Jesus, em desapontamento; retornando para uma reflexão de sua identidade e aceitação de seu destino, aparente em toda a música Gethsemane; até o fim do movimento, com a morte de Jesus. Toda rebelião costuma seguir os mesmos passos, pois ela se inicia com uma faísca muito brilhante e cheia de energia, que se distribui sem muito foco, até que essa energia se perde e há a necessidade de um retorno aos seus princípios, só para poder focalizar a energia que ainda resiste, até alcançar um objetivo ou terminar sem alcançá-lo. Por isso, essa peça nada mais é que um ensaio sobre esse processo, utilizando de uma história bem popular e que não é comumente observada através dessa perspectiva.

Mas esse é um musical com três protagonistas: Jesus, Judas e Maria. Se o papel de Jesus é expor o Estado e a essência do grupo rebelde em cada momento, então qual o papel dos outros personagens?  

Bem, eles são a personificação de duas perspectivas que coexistem e conflitam dentro de um movimento: a idealista e a realista. Não há um movimento sem ideais e sonhos de um futuro diferente, como também não há um movimento sem uma visão mais objetiva que analise a eficácia dos esforços do grupo. Esse talvez seja o ponto mais interessante da peça, diferente de outras mídias que retratam o mesmo tema, porque o conflito não se encontra entre o grupo rebelde e o opressor, mas sim no conflito interno do grupo (apesar da figura opressora existir no musical e ter seu uma participação importante). 

Maria é a visão idealista. Além de agir como a sonhadora e positivista do grupo, ela também age como a tranquilizadora, que deseja mais do que tudo paz e tranquilidade. É ela quem tenta acalmar os atritos entre Judas e sua visão e o restante do movimento, conciliando os dois pontos. Seus temas se chamam Everything is Alright (está tudo bem), e I Don’t Know How to Love Him (não sei como amá-lo), ambos referentes a mensagens positivas e de sentimento.  Ela deseja que a situação seja resolvida pelo amor, não pelo enfrentamento. Ela é a personificação da utopia.

Judas, por sua vez, é a visão realista, que apresenta consequências reais para as ações do grupo. E, curiosamente, ele também segue a linha de Maria, não desejando enfrentamento, mas não por uma mensagem de amor, mas por medo do grupo ser oprimido até seu fim. A esse ponto se torna claro que a peça, apesar de ter como título Jesus Cristo, é uma narrativa do ponto de vista de Judas, já que todos os eventos que ocorrem é uma profecia auto realizada dele, desde seu tema e primeira música. A peça mostra como ideais podem ser facilmente corrompidos e afogados por um realismo que se transforma em cinismo, e como um sistema opressor se aproveita disso.

Apesar de seu desfecho trágico e aparentemente negativista, a mensagem é agridoce, pois a lição não é uma mensagem de desistência das nossas convicções, assumirmos o papel de profetas e afirmar para nós mesmos que o fim é inevitável, até nos levar à desmotivação. Não é coincidência que no final, Maria, dos três protagonistas, é a única que termina viva no musical. A mensagem é que a essência, a vontade de mudança, nunca pode ser destruída. Mesmo que tudo ao redor desse núcleo desmorone, sempre que este existir, novas formas de torná-los realidade podem ser construídas.