Em outubro de ano passado, num dia muito difícil e sem esperança, num fim de tarde abafado e cinzento, eu descia a rua São Paulo em Belo Horizonte para entregar as chaves do apartamento quando passo por uma espécie de topa-tudo mix sebo e, como sempre, corro meu olhar pelos livros porque é um hábito, uma força maior que tudo que há em mim, e eu simplesmente não posso passar direto. Olho de relance, e quando estou prestes a seguir meu caminho bato o olho no programa de luxo de Fantasma da Ópera-2005/São Paulo.
Pergunto o preço sem tentar demonstrar minha empolgação. Cinco reais, o rapaz diz, entediado. Não valia menos de 100. Talvez mais.
O engraçado é que naquela semana até os cinco reais estava pesando, mas eu não poderia deixar passar aquela oportunidade. Comprei. Voltei para casa como se tivesse carregando um tesouro. E, na verdade, era. Continua sendo. Voltei saltitando. Cheguei em casa como uma criança ansiosa para abrir o brinquedo na noite de Natal.
Sentei no chão e folheei por horas. O cheiro de mofo era tão forte que se espalhou pela casa inteira, e eu tive uma dor de cabeça épica por dias. Mesmo assim, não larguei do programa. Depois fiquei pensando na história da pessoa que o pegou pela primeira vez. Se foi ela ou outra que doou no sebo, se ela se arrepiou com o Phantom do Saulo, se mudou alguma coisa na vida dela ou se foi só mais um espetáculo. Porém, no final, não importa. Importa que o programa está na minha estante agora e isso basta.
Só que escrevendo isso foi inevitável não pensar: é ok ter esse nível de amor e admiração por alguma coisa? Quando assisti ao filme pela primeira vez fiquei tão encantada, tão profundamente tocada, que revi por 67 vezes e parei de contar depois disso. Acho que até hoje minha família não pode nem ouvir falar em Fantasma da Ópera – compreensível – mas eu nunca tinha realmente pensado nas implicações disso.
Até entender aonde ia o fandom de Fantasma da Ópera (ou phandom, como costumam chamar), e após conhecer um pouco mais do universo do teatro musical de forma geral pelo grupo da Broadway Meme, que passei a de fato analisar o que é gostar de algo versus se tornar obsessivo sobre isso, ou seja, tentar encontrar e entender a linha que separa ser apaixonado por algo versus aquilo que ultrapassa os limites do saudável.
No documentário Repeat Attenders (2020), de Mark Dooley, lançado digitalmente pelo Vimeo, conhecemos as histórias de fãs que amam radicalmente os musicais apresentados: Cats, Starlight Express, Miss Saigon, Rent, entre outros, e nos leva a tentar entender – sem julgamentos e sem uma voz narrativa – o que é ser tão devotado por um show.
Correndo os olhos pelos vários arquivos de fãs de musicais espalhados pela internet, entre antigos fóruns (alguns recém-ativados pela pandemia), tumblrs, sites, comunidades, etc, conheci a história de fãs que assistiram Fantasma da Ópera mais de 95 vezes, ainda na década de 90 com o lendário Crawford como phantom. Tive a oportunidade de estar em contato com fãs que possuem um conhecimento tão extenso do musical que é impossível não acreditar que de alguma forma não façam parte do programa – e de fato não fazem.
Eles geralmente têm um conhecimento vasto de figurinos, cenários, perucas, curiosidades, polêmicas, fofocas sobre o show e, claro, do próprio elenco, colecionando experiências incríveis e histórias sensacionais vividas dentro dos seus respectivos universos. E quem poderia culpá-los? A magia do teatro é única, e nos transporta para um mundo de música, dança, riso e choro, emoções fortes, luzes, tudo o que sentimos terrivelmente falta durante a pandemia.
É um amor real, compreendido por poucos perto de nós, e compartilhado com muitos ao redor do mundo. Mas qual é a magia do teatro musical? O que tem num teatro escuro que faz com que nos sintamos tão… vivos? Tão presentes? Tão assustadoramente animados? Bem, os críticos, especialistas e fãs mais dedicados listarão vários motivos diferentes, com certeza todos eles muito válidos, como letras, figurinos, elenco, arranjos, expressões dos artistas, alcances vocais, coreografias, etc.
Mas o que leva alguém de fã a super fã? De assistir algumas vezes para 1169? O que me levou a assistir a um filme – por falta de ter o musical ao meu alcance – mais de 67 vezes? Escape? Profunda admiração? Obsessão? (Para os fãs de musicais, mas não-fãs de Phantom) tortura? O documentário tenta responder isso através da voz de vários entrevistados contando as suas próprias sensações com os seus shows favoritos.
Um deles diz que “Assistir a um espetáculo é como estar apaixonado”. Imagino que é como cada um dos fãs do grupo se sentem com os seus respectivos musicais. E acho que a maioria só não é um Repeat Attender porque no Brasil não ficam em cartaz tempo o suficiente para isso.
Que texto lindo!
Magnífico! Tão cheio de intimidade e sensibilidade que me deixou ver um pouco mais de outro lado de você. Não é estar apaixonado, pois paixão acaba e morre, mas admiração é o primeiro passo para o amor. Só se pode amar a quem se admira, a quem se respeita e a quem consegue tocar teu coração. E nesse texto é possível ver o amor que se tem. Ah, eu fiquei curiosa para saber o que era esse ‘programa’, olhei na internet o que era o valor… é mais caro do que 100 reais! muito mais. Você teve um excelente achado.