Por Dentro da Trilha: A Arte de Versionar com Klaus Bentes
Você já pensou como deve ser difícil adaptar uma música de outro idioma para o português? Eu tive esse pensamento há oito anos, vendo as dublagens das músicas da Disney. Então, por curiosidade, eu peguei uma canção em inglês e tentei adaptar. Adorei a experiência e acabei versionando várias. Fui analisando as adaptações musicais para dublagem e, em 2016, criei um blog sobre o assunto, que acabei não dando continuidade. Em 2019, eu comecei um projeto de entrevistar versionistas, para tentar dar mais visibilidade a esse ofício tão fascinante. Depois de aprender bastante fazendo versão, conversando com profissionais da área e estudando as adaptações feitas pelos melhores versionistas, me senti preparado para versionar um musical para ser montado. Então, em 2020, eu entrei no projeto da Epilogue Produções de montar o musical Meninas Malvadas e, no mesmo ano, iniciei o blog Musiklaus. Passei anos estudando o assunto e fazendo versões e agora vou contar o que aprendi.
O que o versionista tem em mente quando vai adaptar uma música? Em primeiro lugar, ele busca fazer aquilo que todo tradutor faz: passar uma mensagem de uma língua para outra. Mas por ser uma tradução musical, ele precisa manter o sentido dentro da métrica. É como palavras-cruzadas, só que em vez de contar as letras, o versionista precisa contar sílabas e notas. E como toda música tem tempos fortes e fracos, essas batidas precisam coincidir com as sílabas fortes e fracas das palavras, e até das frases. Além disso, as rimas têm que ser mantidas ao máximo na versão, e isso inclui as rimas internas, aquelas que estão ali dentro do verso e que passam despercebidas por grande parte das pessoas. Por fim, a letra em português tem que ser clara em sua mensagem, sem construções de frase confusas e evitando palavras estranhas e incomuns.
Com tanto para se preocupar, é natural que algo se perca no caminho. Na introdução de sua excelente tradução de Hamlet, o tradutor Rodrigo Bravo escreveu: “Verdadeira colcha de retalhos, toda tradução deve aceitar que quando cobre a cabeça descobre o pé, e descobre a cabeça quando cobre o pé.” Eu adoro essa frase porque ela define muito bem como é fazer versão. Por melhor que seja o versionista, as perdas são inevitáveis. É claro que quem traduz deve sempre procurar manter o máximo possível do original, mas dada a impossibilidade de se manter tudo, ele precisa se desapegar das palavras e ir atrás da essência.
Vou dar um exemplo da minha versão de Meninas Malvadas. Na música “Where Do You Belong”, há um trecho em que alguns personagens cantam “And Doctor Who quotations” (“E citações de Doctor Who”, traduzindo literalmente). Eu fiz uma lista de opções para essa frase. Tentei manter a referência a Doctor Who, que é uma série britânica da qual eu sou fã, utilizando outras palavras relacionadas à série, como a nave que o protagonista usa, a TARDIS. Pensei em soluções com “Star Trek” e outros termos relacionados à cultura geek. Mas acabei concluindo que todas as opções que eu pensava acabariam causando ruído e prejudicando o entendimento ou me obrigariam a fazer uma rima forçada no verso anterior. Então optei por generalizar, colocando “E várias referências” no lugar de “And Doctor Who quotations”. Às vezes, o tradutor precisa sair pela tangente.
Para contornar as limitações da língua portuguesa, que é um idioma com palavras mais compridas do que o inglês, o versionista tem duas grandes amigas: a paráfrase e a compensação.
A paráfrase nada mais é do que passar a mesma mensagem com outras palavras. Quer um exemplo? O famoso verso “Parabéns pra você” não é a tradução literal de “Happy birthday to you”. Seria “Feliz aniversário para você”, mas aí não caberia na métrica. O “Feliz aniversário” foi substituído por “Parabéns”, que passa uma ideia muito próxima. Na hora de adaptar, um dicionário de sinônimos é de grande ajuda.
A compensação ocorre quando o tradutor percebe que não vai conseguir manter alguma coisa específica, então faz outra coisa similar para compensar. Na música “It Roars” do musical Meninas Malvadas, eu usei esse recurso. Na letra original, eu notei que o segundo verso depois de “Did you ever get a feeling” sempre terminava com a palavra “friends” (amigos), algo que acontece três vezes na canção. Eu percebi que essa repetição era importante para a estrutura da letra. Como eu tinha que manter diversas outras características do original, eu não teria como usar a mesma palavra no fim de cada um dos três versos. Para compensar, eu fiz que eles rimassem entre si. Coloquei “feliz”, “quis” e “diz” no final de cada verso e passei o termo “amigos” para um lugar perto ou transmiti a ideia de outra forma. Não daria para repetir a palavra, então criei uma rima tripla. Foi uma compensação.
Além dos desafios de adaptar músicas, cada projeto vai vir acompanhado de suas dificuldades particulares. O musical Meninas Malvadas é baseado no filme de mesmo nome e já tem alguns termos consagrados por causa da dublagem. A palavra monossílaba “fetch” é uma gíria inventada pela autora da história, Tina Fey, e já possui a adaptação “barro”, uma palavra de duas sílabas. Essa solução funciona na dublagem, mas ao ser colocada numa música, ela não ajuda. Mas como é trabalho do versionista encontrar soluções que não modifiquem a métrica original, eu versionei pondo a palavra “barro” em lugares ligeiramente diferentes. Porém, o versionista é apenas uma das peças do tabuleiro e nem sempre ganha nas negociações. Então, em um verso específico, foi necessário adicionar nota a mais, pois a direção e o elenco sentiram a necessidade de que a palavra “barro” ficasse no mesmo lugar que “fetch”. Outro exemplo de expressão consagrada é a frase “On Wednesdays we wear pink”. A tradução usada na dublagem, “Nas quartas usamos rosa”, tem duas sílabas a mais que a frase em inglês, o que é um problema na hora de adaptar. A saída foi buscar um meio-termo. Mantive a construção da frase, mas coloquei “quarta” no singular (“Na quarta usamos rosa”), fazendo uma elisão de “quarta” com “usamos”. Dessa forma, somente uma nota é adicionada: na última sílaba de “rosa”. Se essa frase não fosse tão conhecida no Brasil, daria para pôr um verso que não acrescentasse nenhuma sílaba.
Em certas ocasiões, por outro lado, o versionista dá sorte. Também na música “Where Do You Belong”, há o verso “Joining them is social suicide”. A tradução consagrada me ajudou nesse caso, porque a frase utilizada no filme cabe perfeitamente: “Isso é suicídio social”. De vez em quando, a língua portuguesa dá trégua e mostra o caminho, mas o versionista precisa estar atento para encontrar essas quase obviedades.
Para finalizar, eu gostaria de propor um exercício para você que leu até aqui. Pegue uma música de um musical que já tenha uma adaptação em português que você considere boa. Compare a letra original com a versão. Vá cotejando verso a verso e tente entender por que traduziram daquela maneira, veja se o versionista respeitou a métrica, a prosódia, as rimas e os outros aspectos musicais da obra. Além de descobrir se a versão é de fato boa, você ganhará um novo entendimento a respeito do trabalho da versão musical e estará mais capacitado para avaliar uma adaptação. Qualquer que seja o seu nível de interesse pelo assunto, você vai achar esse exercício fascinante.
Muito interessante….gostaria de ver como ficaria a versão em português de Vienna,
Canção de Billy Joel. Nunca vi ninguem tentar. O que acha da idéia, Mr. Klaus.????
Ao versionar, temos perdas sim, é inevitável, mas é sempre bom lembrar que também temos ganhos! No caso de quem não é fluente em inglês, por exemplo, os benéficos da versão são enormes 😀. O importante é balancear para que “na média”, os ganhos sejam sempre iguais ou maiores que as perdas…
Excelente artigo! Adorei conhecer um pouco do seu processo criativo!