BM escreve “Versionar: o verbo que nem existe”

O ano é 1888.

Enquanto o Brasil passava pela abolição legal da escravidão, nascia no império russo Israel Beilin, conhecido como Irving Berlin, no dia 11 de Maio. Este, que após anos de repressão anti semita em seu país de origem, embarcou nos Estados Unidos e veio a se tornar um dos maiores compositores de sua geração.

Irving Berlin, entre seus oito anos de idade, era jornaleiro. Andava pela cidade entregando notícias aos nova-iorquinos e ganhava cinco centavos por semana – o que hoje seria equivalente a 1,65 dólares. Andando pela cidade, com seus cinco centavos na mão, avistou, da baía de Nova Iorque, um navio partindo para a China. Abismado com a monstruosidade náutica, não viu o guindaste operando ali na doca.

O guindaste derrubou o menino no mar. As pessoas desesperadas, pedindo para que o menino abrisse suas mãos e nadasse até a costa. Mas suas mãos guardavam os cinco centavos, e ele não podia jogar aos peixes uma semana de trabalho, que ajudaria no orçamento da semana para comer. Ele foi resgatado, mas resgatado com a mão fechada.

Irving Berlin é um exemplo de como existe uma relação conflituosa entre a cultura estadunidense e a plateia internacional. Como um judeu russo pôde ter composto “God Bless America”? O hino afetivo dos norte-americanos? Até os dias atuais ele não é reconhecido pelos seus feitos à música dos Estados Unidos.

Mas esse texto não é sobre Irving Berlin. Esse texto é sobre versão brasileira. E como versionar é uma palavra que não existe.

O VOLP, Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, não possui, dentre suas 382.000 entradas, o termo “versionar”. Diversos outros dicionários também não catalogam significados para esse termo, e quando é catalogado, tem uma definição bem diferente da que nós, artistas de teatro musical, bem conhecemos.

Para nós, versionar uma música, ou um musical, é a tarefa de adaptar um letra cantada, originalmente escrita em um idioma, para outro idioma, buscando manter o esquema de rimas originais, a prosódia, a função narrativa da canção, o sentido e a métrica musical. Versionar é um dos trabalhos mais sofisticados do mercado de teatro musical internacional, o qual se baseia na importação de peças da Broadway ou do West-End e que precisa de uma tradução ao nível do produto original.

Agora, para o resto das pessoas, que estão fora desse mundinho teatro musical br, versões ainda existem. “Juntos e Shalow Now”, da Paula Fernandes, é uma versão de Shalow, do filme “Nasce uma Estrela”. “Estúpido Cupido”, “Eu sou Stefhany”, “Sequência de Lovezinho”. Todas são versões. 

Praticamente todas as músicas do Latino são versões. Ah, e quase todas as canções dos “Xuxa Para Baixinhos” também.

Procurei saber qual é a primeira versão já registrada de alguma música em inglês para o português e não sei, ao certo, se existe esse tipo de informação. Masss, descobri que a tão famosa “Parabéns a Você” tem uma versionista e, INCLUSIVE, ela ganhava direitos autorais pela versão!

Que doido, né?

Tudo começou em 1893, ano em que as irmãs Mildred J. Hill e Patty Hill decidiram compor uma musiquinha inocente para os alunos da creche de Patty, com a letra “Good Morning To All”, algo que em português seria “Um Bom Dia a Todos”. Foi só em 1912 que a música foi aparecer com a famosa letra:

          “Happy birthday to you.

          Happy birthday to you.

          Happy birthday, dear [Seu Nome Aqui].

          Happy birthday to you.”

Em 1924, a música foi publicada em um livro de partituras e virou um sucesso. Mas seu uso nos aniversários só foi consolidado mesmo por conta do musical da Broadway “As Thousand Cheer”. E quem era o compositor? Exatamente! Nosso querido Irving Berlin.

“As Thousand Cheer” era uma revista musical, o que os gringos chamam de revue, que utilizava de manchetes reais de jornal como tema para cenas aleatórias, fazendo chacota de várias figuras públicas. Nem o Gandhi escapou dessa, pra você ter noção. Uma dessas cenas consistia no John D. Rockefeller (o Elon Musk da época) recusando o Radio City Music Hall como presente de aniversário. Inclusive, é esse o teatro onde acontecem os Tony Awards. E é justamente nessa cena que é cantada a famosa “Happy Birthday to You” ao ricaço.

O problema é que Irving Berlin não compôs essa música. Foram aquelas irmãs que compuseram, lembra? Resultado disso: processo por corrupção de direitos autorais.

O rolê é que mesmo perdendo uma briga judicial, o show ainda foi um tremendo sucesso. E instalou de vez, nas cabecinhas estadunidenses, a tradição de se cantar essa música nas festas de aniversário.

E sabe qual o mais doido? Adivinha qual o nome da biografia do nosso queridão Irving? Exatamente. “As Thousand Cheer”.

Ok. Mas e o Brasil?

É que entra o versionista!

Aqui no Brasil existia o costume de cantar essa música, sim. Ela veio na onda do sucesso do musical, mas era uma coisa mais pra elite, e ela era cantada em inglês mesmo, no rádio. Até que chegou o ano de 1942, e o Almirante, apelido de Henrique Foréis Domingues, um radialista da Rádio Tupi tratou de resolver isso. Ele organizou um concurso via rádio para escolher a versão em português definitiva da canção. O júri seria composto por representantes da Academia Brasileira de Letras, que tiveram a tarefa de selecionar a melhor adaptação dentre as 5 mil enviadas à Rádio.

A escolhida foi a proposta de Bertha Celeste Homem de Mello (que eu não achei se é parente do Jarbas, mas seria muito doido se fosse) e tinha um diferencial. Em vez de só repetir a frase quatro vezes, ela trouxe mais conteúdo para a música:

          “Parabéns a você,

          Nesta data querida.

          Muita felicidade.

          Muitos anos de vida.”

Ah, e a senhora (que morreu em 1999 aos 97) ainda brigava se você cantasse “pra você” em vez de “a você”, “Nessa” em vez de “Nesta”. E ai de quem cantasse “Muitas Felicidades”, porque, para ela, felicidade é singular, não plural.

Ela parecia ser uma senhora tão agradável!

Ok, é uma letra em português de uma música em inglês. Mas não buscou manter o esquema de rimas originais, não manteve a função narrativa (porque não tem função narrativa), também não manteve sentido, até incluiu sentido no caso, e também não manteve a métrica musical! Mesmo assim pode-se dizer que é uma canção versionada?

Sim. Só foi “mal” versionada. Entre grandes aspas.

O rolê é que versões são feitas para certos propósitos. E nem sempre músicas contam histórias. Então sim, é uma versão boa. Porque deu certo para o propósito a qual ela se sujeita.

Até porque seria muito chato se a gente cantasse:

          Parabéns a você,

          Parabéns a você,

          Parabéns, caro [Seu Nome Aqui].

          Parabéns a você.

Tá. Mas e os musicais? Qual foi a primeira versão feita para um musical aqui no Brasil?

Essa, eu acredito, seria a adaptação para o português da trilha sonora de “A Branca de Neve”, primeiro filme dublado no Brasil e que teve todas as músicas adaptadas por Aloysio de Oliveira em 1938.

E um musical da Broadway? Qual foi?

Esse seria a produção de My Fair Lady, estrelada por Bibi Ferreira (Para os novatos, sim, é a do prêmio) em 1964. Victor Berbara, radialista e produtor, o não-tão-famoso Ziegfeld brasileiro, se aventurou nas versões. Financeiramente, deu muito certo. Agora, que versões mal-feitas, meu Deus!

Hoje, o mercado mainstream brasileiro de teatro musical se concentra basicamente em dois pólos: adaptações de shows estrangeiros ou musicais jukebox de cantores brasileiros. Então, há de se entender que muitos versionistas têm a chance de tornar várias histórias acessíveis para o povo brasileiro. Não só traduzindo, trocando “I Love You” por “Eu te amo”. Mas também adaptando, trazendo a cultura brasileira para uma história idealizada em outro hemisfério. Isso é muito doido, né?

Um abraço para os meus colegas versionistas. Além de mim, Miguel Magevski (me contratem!), gostaria de citar Ana Toledo, Artur Xexéo (RIP), Bianca Tadini, Chico Buarque, Claudio Botelho, Félix Ferra, Fernanda Maia, Gilberto Gil, Klaus Bentes, Luciano Andrey, Mariana Elisabetsky, Miguel Falabella, Rafael Oliveira, Sophie Orleans, Silvano Vieira, Toquinho, Victor Muhlethaler, Victor Berbara, Vitor Rocha e tantos outros que não me vieram à mente, mas que saibam que tamo junto! A tarefa que nós temos a coragem de fazer é linda! E produtoras, por favor, olhem por novos talentos.

Para concluir esse texto que deu mil voltas, recheadas de mil fatos históricos aleatórios, eu tenho um recado pra você, que gosta de musical: cante em português, assista em português, vibre em português. Para que um dia, quem sabe, “versionar” esteja nos dicionários.

Miguel Magevski

Miguel Magevski é um estudante de arquitetura metido a compositor, versionista e aspirante a produtor cultural. Mora em Vitória, no Espírito Santo e é apaixonado por musicais desde pequeno. Seu hobby favorito é ter opiniões fortes sobre assuntos aleatórios e guardar o máximo de curiosidades inúteis possíveis. Afinal, é pra isso que serve a vida, não é?

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